domingo, 6 de março de 2022

 "Vô, por quem você está torcendo,  Ucrânia ou Rússia?"

         

Já cheguei aos 79, a caminho dos 80 no fim do ano. Por volta dos meus sete ou oito(faz algum tempo...), no antigo curso primário, fim da década de 1940, em minha cidade natal, Penedo/AL, multissecular ribeirinha próxima à foz do São Francisco, era um dos tantos alunos infantes a cantar um hino de ‘exaltação à Pátria’,  na formatura matinal que iniciava o dia letivo do Grupo Escolar ‘Gabino Besouro’.

Meninos e meninas perfilados, vestidos de branco e azul marinho, mão direita colada ao peito, naquela diuturna e inocente manifestação de patriótico amor febril. “Deus salve, América, terra de amor /  Verdes mares, florestas, lindos campos abertos em flor! / Berço amigo, da esperança, da bonança, o altar / Deus salve, América / meu céu, meu lar...”

Por volta dos 15 anos, entre 1957 e 58, descobri, por acaso, que ‘Deus salve América’ era uma versão sabuja do compositor João de Barro, na voz de Chico Alves,  do original ‘God bless America’, de Irving Berlin, notável  compositor de origem russo-judaica, naturalizado norte-americano, vocalizado por famosos do ‘hit parade’ como Bing Crosby, Ray Charles e Frank Sinatra.

Contextualizemos o ‘Deus salve América’ tupiniquim. Gravado em disco Odeon, 78 rotações, lançado em junho de 1945, fim da Segunda Guerra Mundial, nos estertores ditatoriais do Estado Novo que, por pressão 'yankee' do governo Roosevelt, remetera brasileiros para 'combater' na Itália as tropas da Alemanha nazista, depois da derrocada do fascismo de Benito Mussolini. Em troca, ‘ganhamos’(assimn mesmo, entre aspas) a Siderúrgica de Volta Redonda, onde passamos a produzir aço para suprir o mercado estadunidense, uma ‘comoditie’, convenhamos, negociada na Bolsa de Nova York a preço vil.

Naquela segunda metade dos anos 1940, curtíamos revistas infantis em quadrinhos, de infames legendas adaptadas para o Português, tipo ‘Reco-Reco, Bolão e Azeitona’, o avaro ‘Tio Patinhas’, o mau-caráter ‘Pato Donald’, Mickey e Minnie,  simpático casal de  ratinhos que jamais casou nem procriou, além dos ‘gibis’ infanto-juvenis, revistas originárias das ‘tirinhas’ em quadrinhos importadas pelo jornal O Globo a partir dos anos 1930, com personagens e ‘heróis’, de Tarzan criado por macacos na selva africana,do faroeste  de Tom Mix e Buck Jones até as aventuras interplanetárias de Flash Gordon, bem assim Capitão Marvel, Superman, Fantasma a povoar nosso imaginário de aventuras, criados em pranchetas norte-americanas.

Gerações de brasileiros, antes da minha e até nossos dias, formadas sob a visão semiótica da indústria cultural dos ‘States’, contagiadas pelo  cinema e depois pela TV, para cujas telas migraram, em carne e osso, os badalados mocinhos(e os bandidos também) nascidos em produções gráficas impressas, hoje em dia, com diferentes cenários e enredos, incrementados na internet.

Promovo esta volta no tempo para asseverar que permanecemos figadais consumidores dos superpoderosos e fictícios protagonistas do ‘show-bussines’ de Hollywood, com estereótipos clonados da cruenta vida real de conflitos fratricidas mundo afora, que alimentam, com insaciável voracidade, a dantesca indústria bélica dos Estados Unidos, sustentada por colossais instrumentos de hostilidades humanas, como a famigerada OTAN, para manter aquecida a ‘Guerra Fria’, ciclo que todos  conhecemos como da linha divisória do planeta, no pós-guerra contra o derrotado nazifascismo, entre o lado dos ‘bons, defensores da liberdade e da democracia’, e dos ‘maus, comunistas ateus, até hoje  comedores de criancinhas, cortadores de padres em picadinho e furadores, com alfinete, de hóstias consagradas, para que escorresse o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, como ensinou nosso orientador espiritual, na Cruzada Eucarística Infantil, da Catedral de Penedo, o ainda diácono, depois padre, Aldo de Melo Brandão. E eu nem tinha idéia de que meu irmão-paterno, André Papini Góes, era um comunista, à época cassado, com seu Partido, da  cena política brasileira pelo governo do general Dutra, um serviçal mequetrefe do Império do Norte. E corri o risco até de ser precocemente excomungado por conta de minha relação consanguínea. Não há, porém, histórico sobre suposto cardápio canibalesco de comunistas onde quer que seja, a oferecer criancinhas ao molho de vinagrete e picadinho de padre à cabidela.

A guerra de propaganda anticomunista, disseminada mundo afora para desfavorecer a Revolução de 1917, que levou o proletariado da Rússia ao poder, uma alternativa socioeconômica inaceitável para o  até hoje vigente e embolorado sistema  capitalista de oligarquias dominantes.

André Papini Góes, inveterado humanista, defensor de um mundo menos desigual, jornalista e advogado de trabalhadores alagoanos, explorados nas plantações e usinas de açúcar, com seu mandato parlamentar cassado em 1948, foi procurado, vivo ou morto, pela polícia do governador facista Silvestre Péricles de Góes Monteiro e só sobreviveu por mergulhar na clandestinidade.

Na última terça-feira de carnaval, dia 1º, um de meus netos, garoto 24 horas antenado nos aplicativos de seu celular, quis saber por quem estou ‘torcendo’, na guerra entre Ucrânia e Rússia.

Expliquei-lhe, em esforço de didática compatível com sua aguçada(e confusa) percepção infantil, que o conflito não era um jogo de futebol, uma justificativa complicada e pouco convincente diante do atual ‘vale-tudo’ de torcedores bandidos, país afora,  ao atentarem contra a vida de profissionais de seus próprios clubes.

Com invasões militares dos Estados Unidos transmitidas ao vivo e integrantes da grade  telejornalística, entre nós na GloboNews e CNN/Brasil, com repórteres especializados em pormenorizar as tais ‘operações cirúrgicas’, com poderosos armamentos de alta tecnologia(considerados ‘coisa de cinema’), - recorrentes desde a invasão norte-americana no Iraque -, fica difícil explicar ao senso comum, principalmente às crianças, as deletérias razões dos conflitos armados, todos eles, sem tirar nem pôr, por conta da sanha de hegemonia geopolítica do grande capital, centrado na poderosa indústria bélica norte-americana e subservientes parceiros europeus congregados na OTAN, à busca de apropriação de  matrizes energéticas indispensáveis a suas máquinas de produção que, via de regra, elas, sim, com insaciável antropofagia, sempre consumiram literalmente seus trabalhadores.   (AMgóes)