A incapacidade de nossa burguesia industrial
para liderar um projeto de desenvolvimento
No Brasil, não foi assim, pois sem forte participação autônoma do
governo e da burocracia estatal, em aliança com o setor privado, especialmente
depois da Revolução de 1930, é pouco provável que houvéssemos atingido o nível
de industrialização alcançado.
A estagnação econômica dos anos 90, deu os primeiros sinais de que a
burguesia industrial não era capaz de liderar o processo de desenvolvimento,
pois, fraturada entre o capital nacional e o capital estrangeiro, não possuía a
coesão necessária para fazer a industrialização avançar na direção da maior autonomia
requerida para sustentar um projeto de desenvolvimento nacional.
A partir dos anos iniciais da década de noventa, com as reformas
neoliberais e a entrada em ação do processo de desmonte do aparelho estatal,
incluindo as empresas estatais — que culminou com o intenso processo de
privatização nos governos de FHC, sob a pressão externa dos organismos
multilaterais, especialmente FMI e Banco Mundial, comandados pelas grandes
potências industriais — fragilizou-se ainda mais a capacidade da burguesia industrial
de liderar o processo de industrialização.
A realidade não se compadeceu com as “boas intenções” declaradas dos
empresários privados, nem dos dirigentes políticos do PSDB responsáveis pela
política econômica, sob a batuta do FMI e do Banco Mundial, de que a abertura
econômica e as privatizações produziriam um surto de desenvolvimento.
Muito pelo contrário, a falta do apoio estatal levou a indústria a
ingressar num processo continuado de perda de competitividade — muito além do
que se justificaria pela experiência histórica dos países industrializados — e
de queda em sua contribuição para a sustentação do processo de desenvolvimento.
Entrava, assim, em marcha forçada, em pleno funcionamento a estratégia
de integração-dependente na economia internacional, sob a égide das grandes
corporações privadas internacionais, cada vez mais dominadas pela
financeirização de suas atividades.
A assunção ao poder do PT, em 2003, reabriu a possiblidade de que as
lideranças da classe trabalhadora, através de seus representantes no governo,
fossem capazes de recuperar a dinâmica da industrialização do país, desta vez
sob a hegemonia da classe trabalhadora, mas em estreita aliança com a burguesia
industrial nacional, liderada por grandes empresas privadas constituídas para aproveitar
o mercado interno de obras públicas e pelas poucas empresas estatais que
restaram do processo de privatização, especialmente a Petrobras.
Prof. Flávio Lyra |
Já nas vésperas de assumir o governo, o presidente vitorioso,
entretanto, premido pelas ameaças internas e dos organismos internacionais que
davam as cartas na rolagem da elevada dívida externa contraída no governo de
FHC, teve de fazer fortes concessões e a comprometer-se a não alterar a
política econômica, nitidamente desfavorável à recuperação do processo de
industrialização.
Essa política mantinha a taxa de câmbio apreciada, desestimulando as
exportações e favorecendo a penetração dos produtos importados no mercado
interno. Mantinha as taxas de juros da dívida pública elevadas em nome do
combate à inflação e gerava superávits fiscais elevados para pagar os serviços
da dívida, restringindo a capacidade do Estado para realizar investimentos na
infraestrutura econômica.
Desde os governos militares já havia surgido no cenário econômico um
novo e poderoso ator econômico, um setor financeiro altamente concentrado e com
fortes articulações internacionais, com grande poder não apenas de estabelecer
as regras do jogo no mercado financeiro, como também de influenciar o processo
político em seu favor.
Esse novo ator patrocinou desde o início as reformas neoliberais, pois
estas vinham ao encontro de sua lógica de funcionamento, vinculada ao favorecimento do aumento da
acumulação financeira, no contexto do que tem sido denominado de
“financeirização”, em detrimento da acumulação produtiva.
A burguesia industrial nacional,
em nenhum momento, se mostrou interessada em articular-se com as forças
políticas vinculadas à classe trabalhadora, que chegavam ao poder, para
resistir às investidas do setor financeiro na captação dos recursos financeiros
para uso não produtivos ligados à pura acumulação financeira. Prevaleceu,
assim, o temor de contribuir para o fortalecimento das forças populares que
subiam ao Poder e de submeter-se a sua hegemonia.
Com a entrada da China no
comércio internacional de produtos primários, aumentando substancialmente as
exportações e algumas mudanças introduzidas pelo novo governo na política
econômica, especialmente no campo social e na retomada dos investimentos
produtivos, sob a liderança do BNDES, e das empresas estatais, desfrutou-se de
um período de aceleração do crescimento econômico, até pouco depois da crise
financeira internacional de 2008.
Tanto a burguesia industrial,
quanto a classe trabalhadora se beneficiaram do soerguimento da atividade
econômica, mas a primeira jamais disfarçou sua antipatia frente ao governo
popular e nunca se interessou em enveredar, de modo decisivo, por uma aliança
estratégica para a criação de um bloco de poder que possibilitasse a
conformação de um novo modelo de política econômica assentado em maior
participação estatal na atividade econômica e em mais autonomia em relação aos
mercados.
Posteriormente, já no primeiro
governo de Dilma, quando foi feita uma tentativa de fugir à rigidez da política
econômica voltada para a acumulação financeira e a integração-internacional-dependente,
a burguesia industrial colocou-se ao lado do sistema financeiro para boicotar
sua continuação.
A burguesia industrial durante
todo o período concentrou seu poder em reivindicações de redução da carga
tributária e no combate às políticas que aumentavam os gastos sociais e os
salários reais, deixando de lado qualquer articulação contrária ao controle da
ação predatória do sistema financeiro, que permanecia extraindo capacidade
financeira da sociedade, para esterilizá-la em aplicações financeiras
recorrentes, num círculo vicioso e perverso contra o aumento da formação de
capital produtivo e a reindustrialização.
A campanha de desestabilização
dos governos vinculados à classe trabalhadora começou desde meados do primeiro
mandato de Lula, com denúncias de corrupção, orquestradas pela imprensa e,
certamente, vistas com bons olhos pela burguesia industrial, cuja representação
política vislumbrava no resultado dessa ação o retorno ao poder, sob a liderança
do PSDB.
Com a desaceleração do
crescimento econômico e o aparecimento de desequilíbrios importantes nas contas
fiscais, no balanço de pagamentos e o aparecimento de pressões inflacionárias,
como consequência da inadequação do modelo de política econômica voltado para a
acumulação financeira e a integração-dependente na economia internacional,
criou-se o clima favorável para a exacerbação das pressões contra a permanência
no Poder dos representantes da classe trabalhadora.
A campanha contra a corrupção, sob
a liderança da grande imprensa, com o apoio da burguesia industrial, do capital
estrangeiro e, principalmente, do setor financeiro, sob o comando político do
PSDB — contando com a mobilização de setores da burocracia estatal instalada na
Poder Judiciário, e na Polícia Federal — intensificou a crise econômica que já
vinha tomando forma em decorrência da mudança na conjuntura internacional e da
incapacidade do modelo de política econômica em lidar com o problema da
desaceleração do crescimento econômico.
Vive o país nestes dias um
período crucial para os rumos que tomará seu processo de desenvolvimento
econômico e político nos próximos anos, o da disputa feroz entre duas
ideologias de desenvolvimento: a ideologia, dominante, da
integração-internacional-dependente, que entregará definitivamente aos
mercados a direção do processo de desenvolvimento; e a ideologia
social-desenvolvimentista, ainda em etapa de consolidação, que propugna pela
participação decisiva do Estado na condução do processo de desenvolvimento e na
sustentação de políticas sociais em benefício da classe trabalhadora.
A fragilidade política em que se
encontra o governo e a incapacidade revelada pelo PT, ao longo de seus
governos, para consolidar junto à sociedade e sua própria base social, a ideologia
social-desenvolvimentista, já determinaram uma primeira derrota frente ao
modelo de política econômica adotado pela ideologia de integração-internacional
dependente, com a adoção das medidas de reajuste fiscal e monetário vigentes.
As pressões externas, cujas
manifestações através das agências de “rating”, ameaçando o rebaixamento do
“grau de investimento”, são apenas a ponta do iceberg dos interesses das
corporações internacionais privadas, que atuam ao lado das pressões internas
lideradas pelo PSDB e apoiadas pelo sistema financeiro, sob a orquestração da
grande imprensa, em favor de uma rendição total à ideologia da integração
internacional-dependente.
Restam, entretanto, alguns
baluartes, que a duras penas o governo vem tentando preservar, como é o caso,
no campo econômico, da consolidação do complexo minero-industrial e de
construção naval, que gira em torno da Petrobras e dos recursos do Pré-Sal, e a
preservação dos bancos estatais; e no, campo social, a política de aumentos
reais do salário mínimo e as políticas de universalização dos serviços de saúde
e previdência social.
A preservação das chances de
consolidar um bloco do poder que dê sustentação a ideologia
social-desenvolvimentista está na dependência da capacidade e sensibilidade das
lideranças políticas e empresariais para articularem um pacto de resistência às
pressões internas e internacionais, mormente as do capital financeiro para uma
rendição total à política econômica de corte neoliberal ainda dominante.
No campo político, a preservação
da democracia é indispensável para manter a classe trabalhadora com chances de
se manter no Poder e abrir espaço para, num futuro ainda distante, consolidar
sua hegemonia na sociedade e tornar viável uma alternativa ideológica
pós-capitalista, cuja etapa preliminar consiste na consolidação da ideologia
social-desenvolvimentista.
(*) Flavio Lyra é economista da escola da UNICAMP. Ex-técnico do IPEA e de organismos internacionais.
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