sábado, 8 de outubro de 2016


SOBRE  A  IGREJA  UNIVERSAL,

MESSIANISMO DE  ESQUERDA E 

LAÇOS  DE  PERTENCIMENTO    

Luiz Antônio Simas (*), no Facebook

Resultado de imagem para Ilustração da IURDOs ânimos acirrados do período eleitoral estão propícios a simplificações de todos os tipos. É o que percebo lendo diversas coisas sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, envolvida diretamente no segundo turno da disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro. Vou fazer aqui algumas ponderações, para enriquecer o debate.
É evidente que a igreja cria laços de pertencimento, rede de sociabilidade, comunidade de afetos, senso de coletividade, sensação de proteção social, sentido de mundo, etc. Destacar isso é importantíssimo, pertinente, correto e ajuda bastante no debate, inclusive do ponto de vista das estratégias eleitorais. Cabe ponderar, todavia, que não são apenas igrejas, terreiros, mesquitas e sinagogas que criam isso: torcidas organizadas, escolas de samba, clube de adoradores de vinho, comandos criminosos, sociedades secretas, máfias, fã clube de astro do rock, grupo do churrasco da esquina, pelada semanal de veteranos, fanáticos por Star Trek fantasiados com orelhas de Spock e líricos botafoguenses que viram o título de 1989 também estabelecem laços de pertencimento, senso de coletividade e afetos compartilhados a partir de elementos comuns. Sinto informar que até o Estado Islâmico se enquadra neste caso (e como se enquadra!).
É claro também que falar em evangélicos como um grupo homogêneo (é ótimo que circulem textos combatendo essa estreiteza) é como singularizar a ideia de África: encobre, para ficar apenas no que é mais simples, diferenças teológicas, percepções diversas da Bíblia, maneiras distintas de se encarar temas sociais relevantes (direito das minorias, aborto - a Universal admite - educação laica ou religiosa, etc.). A pauta colocada, portanto, é pensar a IURD e seu projeto de poder.
Aí surge um primeiro ponto fundamental: na disputa pelo mercado da fé, e na construção de solidariedade e pertencimento entre seus membros, a IURD adota como uma de suas estratégias fundamentais exatamente a destruição de outros laços de pertencimento, a partir de uma visão binária entre o bem e o mal. Quando escreveu “Orixás, Caboclos e Guias”, o livro que fundamenta a visão da IURD sobre as religiosidades brasileiras de matriz afro-ameríndias, tema que me interessa diretamente, o Bispo Macedo fundamentou a doutrina de que essas religiosidades, e os saberes a elas vinculados, são manifestações satânicas. É uma doutrina que a IURD abraça até hoje em seus cultos.
Macedo defende no livro que diversos vícios, doenças, brigas e tragédias são originárias do culto a espiritualidades da umbanda e do candomblé. Diz ainda, literalmente, que as “seitas demoníacas” de origem africana são as grandes responsáveis pelas mazelas de Brasil e pelo problema da dependência química entre seus membros. A teologia da IURD, portanto, tem como um de seus alicerces a ideia de cruzada contra as práticas culturais e religiosas vinculadas às crenças de origem africana, contrapondo a elas - que gerariam desgraças entre seus praticantes - uma teologia da prosperidade fundamentada na ideia da felicidade terrena.
Desconsiderar isso em ponderações sobre as sociabilidades bacanas que a IURD engendra entre seus membros é, no mínimo, complicado. Há uma instância de sociabilidade que se estabelece, portanto, pela desqualificação de outras formas de sociabilidade e saberes. Ela é, inclusive, racista, já que opera no campo simbólico da depreciação das práticas e dos saberes não cristãos.
Não bastasse isso, a IURD (ao contrário da ampla maioria das designações evangélicas) é envolvida em casos escabrosos de lavagem de dinheiro, extorsão de fiéis, ocultação de patrimônio, remessa ilegal de divisas, etc.
Constatar um lado perverso da rede de sociabilidades que a IURD cria, por outro lado, não pode significar a demonização dos seguidores da igreja (para usar uma ideia da própria igreja) ou a generalização da ideia de que seus fiéis são ignorantes desprovidos de tino para perceber o mundo. A IURD conseguiu criar laços de pertencimento entre seus membros a partir de uma rede de assistência, isso é evidente e até mesmo louvável em certo sentido. Não há como desconsiderar, todavia, que essa construção de sociabilidade se fundamenta em pontos positivos, mas também no ódio às diferenças, no reacionarismo mais tacanho e no racismo simbólico expresso na satanização de saberes afro-brasileiros. Nem toda construção de sociabilidade é apenas positiva, quase nenhuma é, e isso é tão óbvio que me parece constrangedor ressaltar.
Quanto ao quadro eleitoral, de forma mais ampla, não me parece producente, ou mesmo correto, desqualificar o voto em Marcelo Crivella por causa da IURD. É certo que uma parte de seu eleitorado é arrebanhado pela igreja; é errado dizer que isso explica o desempenho do bispo licenciado. Talvez a igreja seja mesmo uma razão menor para a sua popularidade (deixo essa questão para os cientistas politicos de plantão).
Não se ganha um eleitor com o tosco argumento de que ele é burro. Isso é apenas demofobia. Se ganha o eleitor discutindo projeto de cidade, mostrando que há maneiras distintas de se pensar o município e demonstrando que um determinado projeto pode ser melhor que o outro. Não concebo outra forma de se fazer política numa democracia representativa. Para ganhar eleição de outra forma, não contem comigo.
O laço de pertencimento que a IURD cria também pode ser comparado, guardadas as proporções, ao sentimento de pertencimento de certos setores da esquerda dotados de um purismo messiânico e do discurso civilizador de que nós somos os redentores do povo, imaculados guardiões da chama da justiça social, sabemos o que é melhor para as massas e jamais nos deixaremos sucumbir ao mal.
No caso da IURD, o pertencimento pelo afeto (entre seus pares) e pela desqualificação do outro (os que não são seus pares) pode gerar fundamentalismo, destruição de terreiros, chute em santa, preconceito contra minorias, políticas públicas retrógradas, ameaças ao caráter laico do estado, cruzada moral e, a longo prazo, um Brasil fundamentalista e monocromático. Intolerante, o Brasil em larga medida sempre foi e é. Um projeto fundamentalista de estado seria a cereja desse bolo confeitado desde a colonização.
No caso de uma esquerda que se pretende imaculada e se enxerga como vanguarda condutora dos ignorantes no rumo da redenção, a lógica é parecida: o pertencimento a essas certezas inabaláveis pode gerar tiranias abjetas, fanatismos ou apenas a conquista juvenil de grêmios secundaristas e DCEs, mas jamais será suficiente para se ganhar uma eleição majoritária em segundo turno e governar democraticamente, respeitando o contraditório, a capacidade dos eleitores e as percepções distintas da realidade, uma cidade complexa e múltipla como o Rio de Janeiro.
Simbora disputar a cidade.

(*) Luiz Antônio Simas é mestre em História Social pela UFRJ e escritor.             

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