terça-feira, 26 de setembro de 2023

 O ‘Marco Temporal’ de Bolsonaro e a 'cláusula pétrea' do histórico domínio dos indígenas sobre suas terras

                                                                                                   (Imagem: coladaweb.com) 

‘Cláusulas Pétreas’ são regras imutáveis de nosso ordenamento constitucional. Advêm de mecanismos legais introduzidos pelas Cortes Portuguesas a partir do Brasil-Colônia,  afinal reiteradas na vigente Constituição Federal (art. 60 § 4º), de 1988.

´São ‘Cláusulas Pétreas’: o caráter federativo do Estado brasileiro; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes da República; os direitos e garantias fundamentais (individuais, coletivos, sociais e políticos).

Entre essas prerrogativas fundamentais, o direito territorial dos ‘povos originários’(indígenas), em toda a sua diversidade étnica e cultural Brasil afora, através de reconhecimento, proteção e demarcação de órgãos estatais. 

                                    (Gravura: Rugendas/Enciclopédia Global)

Desde os idos coloniais(alvará de 1680, concedido por Pedro II, rei de Portugal, entre outros documentos), a legislação conferiu direitos irrestritos de nossos indígenas sobre suas terras, malgrado, no curso dos séculos, brechas ditas ‘legais’ tenham permitido descalabros como a escravização dessas populações nativas e a ocupação de seus territórios.

No século 19, o governo imperial outorgou às províncias a legislação  da política indigenista, notadamente nas atuais regiões do Nordeste e Sudeste, com o desencadeamento de conflitos fundiários e ações genocidas contra os silvícolas, apesar da ‘Lei das Terras’, de 1850, que lhes assegurou o domínio inalienável sobre os territórios tradicionais.

                                                                             (Foto: coladaweb.com) 

Proclamada a República, em 1889, os estados continuaram a dar as cartas sobre as terras indígenas e, em 1908, o Brasil foi acusado de genocídio, no âmbito internacional, em meio a excrescências de políticas públicas assépticas que previa, no Estado laico recém-estabelecido, a ‘catequese’ dos povos originários, com fins supostamente ‘civilizatórios’, através da instituição de tutela do SPI/Serviço de proteção ao Índio.

Em 1967, primeiros tempos da ditadura militar, o SPI passou à designação de FUNAI/Fundação Nacional do Índio, uma mudança burocrática, sob visão distorcida dos fardados quanto à amplitude da integração nacional,  na gestão segregacionista das demandas indígenas, concomitante com um programa de assentamento de agrovilas na Amazônia, estágio predecessor da formidável organização criminosa de grilagem, formação de latifúndios na floresta devastada e a introdução de pecuária extensiva, até hoje predominantes na imensa região Norte do país. 

                                                                                                                (Foto): Observatório do 3º Setor) 

No papel, nossa carta Magna de 1988 consagra, com  os melhores propósitos de cidadania,  os direitos originários dos indígenas sobre os territórios ocupados pela ancestralidade multissecular(ou multimilenar?), observada a preservação dos recursos naturais inerentes ao bem-estar dos ocupantes e à sua reprodução física e cultural, respeitados usos e costumes, de cujos perímetros não podem ser removidos, salvo em casos emergenciais de comprovados riscos a sua convivência ambiental.

Registraram-se, entre o fim do século passado e começo do atual, expressivos avanços configurados em tratativas de organismos internacionais, para proteção dos contingentes autóctones nos quadrantes do planeta, ainda de parca aplicabilidade entre nós, como a ‘Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas’, de 2007. Por aqui, foi estabelecida em 2012 a introdução da ‘Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas’.

                                                                                                                  (Foto: ECOA) 

Entretanto, a inação resultante do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff foi dilatada a partir de 2020, através de parecer da Advocacia Geral da União, no (des)governo Bolsonaro, que autorizou/certificou propriedades privadas nos limites de terras indígenas em demarcações definitivas, proteladas pelos trâmites burocráticos oficiais.

A colossal invasão do agronegócio e da mineração na Amazônia, respaldada pela  criminosa gestão bolsonarista, restabeleceu  a expansão privada com reedição da hediondez genocida do período militarista, mais de meio século atrás, fundamentada em esdrúxulo ‘Marco Temporal’(recém-desconstruído   pelo STF), ao arrepio de (inalterável) ‘cláusula pétrea’ inserida em nosso arcabouço constitucional.

                                                  (Foto: Agência Brasil) 

Agora, no governo Lula-3, o inédito Ministério dos Povos Originários retoma, com atualizados parâmetros, a citada ‘Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas’, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, a suscitar promíscua resistência ruralista, face à perda liminar de investimentos em áreas indígenas.

Ocorre que o alegado princípio da ‘boa fé’, norteador de ocupações concretamente ilegais, conquanto eventualmente autorizadas pelo Poder Público, não subsiste às incondicionalidades da ‘cláusula pétrea’ constitucional, desprovida de anteparos indenizatórios, face ao preconizado no artigo 3º da Introdução às Normas do Direito Brasileiro(‘a ninguém é dado desconhecer a lei’).

                                                          (Foto: pv.org.br) 

Infelizmente, o oportunista ‘jeitinho brasileiro’ tem propiciado, no  curso de nossa História (remota ou contemporânea), a inclusão de ‘puxadinhos’ jurídicos que, via de regra, contemplam supostas compensações a transgressores dos preceitos legais.

Dessa forma,  pode-se apostar que a derrubada do ‘Marco Tempooral’ bolsonarista implicará acordos no Congresso, majoritariamente conservador, com vista ao reembolso de  criminosos ocasionalmente defenestrados de tradicionais reservas indígenas no país. A ver. 

(Antônio Manoel Góes) 

 

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