Ministros, juízes e perus(que,
surrealmente, festejam o Natal)
FERNANDO HORTA, no JORNAL/GGN
O Supremo Tribunal Federal é uma
instituição relativamente pequena, com composição fixa (salvo pequenas
mudanças), com regimento interno conhecido, que tem certa transparência e
produz documentos escritos que sobrevivem à aceleração dos tempos
contemporâneos. O STF é, pois, um excelente exemplo para compreensão do que
ocorre no Brasil. Especialmente a partir do momento que a corte deixou de ter o
lado jurídico como balizador de suas ações. Quando as doutrinas, os argumentos
lógicos e o respeito às leis deixaram lugar à retórica conveniente, ao conchavo
político e ao descaramento abusivo, a corte se tornou um espelho das forças que
agem sobre ela. Ao invés de ser um polo de poder contra-hegemônico, plural e
garantista, o STF cedeu e se tornou igual ao monstro que deveria conter. Suas
mudanças, ao fim e ao cabo, espelham o que ocorre com o Brasil. ||| E o que terá provocado essas mudanças
na maioria dos ministros da Corte
Consitucional em tão pouco tempo? Teriam sido apenas os “erros do PT”, como gosta de afirmar uma parte
da esquerda que jamais arcou com o ônus de ser governo? Acho que não. As mudanças que vemos no
microespaço do STF, afeito ao exercício do poder em escalas muito maiores do
que no resto da sociedade, reflete o objetivo de quem o exerce, demonstrando
suas práticas, valores e estratégias. Mesmo sem querer, o STF pode ser o grande
delator do que está por detrás das tais ‘mudanças’ que o país vive desde 2013. ||| O período de Carmem Lúcia na
presidência do Supremo foi o período do golpe liberal. Ela era bajulada pela mídia e tinha frases de
efeito para coroar uma retórica inepta e rudimentar, repetindo que “as
instituições estão funcionando”. O golpe de Temer e as piruetas exercitadas nos
anos seguintes precisavam da teatralidade da Corte, através de termos jurídicos
que ficarão na História para legitimar os abusos. tais como “Mutação constitucional”, “a norma
como exegese viva da sociedade”, “o
direito que ouve os anseios da sociedade” e outras ‘pérolas jurídicas’ estão entre as
reboladas ouvidas no Supremo para legitimar o fim da presunção da inocência, da
hierarquização do Direito (permitindo a Sérgio Moro, um juiz de 1ª instância,
fazer o que quisesse) e, em última análise, o desmonte da Constituição de 1988. ||| Os juristas contemporâneos chamam
todo este carnaval retórico que age como fantasia a esconder o uso do poder de
“poder desconstituinte”. Marx definia isso como a ideologia da classe dominante,
cuja ação visa apenas à manutenção da hegemonia burguesa com fantasia jurídica.
Havia a necessidade do empolamento teatralizado das cortes e das togas. As leis
eram parcialmente respeitadas, e se não eram o corrompedor da lei, era um juiz,
o que garantia a continuidade da encenação.
O TRF4 chegou a dizer em sentença que a Lava a Jato NÃO precisava seguir os
ritos jurídicos pois era de “exceção” a ser normatizada pela retórica dos
tribunais, criando uma teatralidade ao emprestar uma legitimidade pornográfica aos
desinformados. ||| Os liberais tinham a pretensão de controlar a
mudança, confiando em que seria mais um
golpe branco, pois mudariam a presidenta para não mudar mais nada, preservando
as aparências. As cortes e os juízes ainda tinham serventia. A mudança, para
eles, deveria apenas fazer com que a esquerda caísse, e mais nada, evitando-se
transformações indesejadas. ||| Nossos golpistas desconhecem a frase
de Luís XVI ao tentar fugir do Palácio de Versalhes, em plena Revolução Francesa.
Surpreendido pelo povo na frente da sua carruagem, o monarca foi perguntado
pelo cocheiro sobre a velocidade em que deveriam escapar. O rei teria dito: “Nem
tão rápido para que pensem que estamos fugindo, nem tão devagar para que achem
que é deboche”. Agora, entre nós, o que se tenta é manter as aparências para se
conseguir o que a História do Brasil chama de “mudança pelo alto”. Foi
assim a Proclamação da independência e da
República. Mudanças, claro, mas para pouco ou quase nada mudar. ||| Não é, pois, sem sentido que os
“liberais” brasileiros pensassem que poderiam fazer isso de novo. Contudo,
cometeram um enorme erro. Nem Bolsonaro assumiu
e o fascismo já implementa uma diferença radical no STF. Sai a retórica
piruetal exegética jurídica e entra o uso duro e frio da exceção como forma de
poder. Toffoli, que subservientemente aceitou nomear um general para supervisionar seus trabalhos,
não teve o mínimo de pudor em cassar de forma monocrática a decisão de Marco
Aurélio. “Nunca antes na História deste país” um ministro tinha sido calado por
decisão individual do presidente da Casa. Era sempre o pleno, que é, digamos, a fantasia liberal da decisão como exercício
de uma democracia, ainda que mínima. ||| A decisão de Toffoli, amparada por
generais que se reuniram, dizem, no segundo andar do STF, é o descortinar do
fascismo. Toffoli inaugura a hierarquia entre os ministros, tornando o STF uma
cópia do Exército. E sabe-se que Toffoli decide conforme seu supervisor ‘verde-oliva’
lhe ordena. Marco Aurélio, de forma ousada,
expôs o golpe dentro do golpe. Os liberais perderam a mão, porque o
fascismo transforma tudo à sua volta em espelho de si mesmo, seguindo o estágio
da monstruosidade que Aécio, Eduardo Cunha e tantos outros impuseram ao país. ||| A ignorância de procuradores pedindo
a intervenção no STF é da mesma lavra da felicidade de alguns ministros e
juízes com a queda da decisão de Marco Aurélio. É como o peru comemorando o
Natal. Se Marco Aurélio denunciou as “manipulações de pauta” para atacar a
esquerda e o PT, é preciso que se diga que elas não são tão distantes da
“competência estendida” que Mendes e Moro usaram para cassar atos que não
estavam em suas esferas de influência. De qualquer forma, não somos mais uma
República, e Marco Aurélio mostrou bem isto. Estamos em transformação acelerada
para algo monstruoso que a História chama de fascismo. Com o STF e tudo mais.
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