segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Do rumor de racismo
à 'ciência de hotel'


Cilene Victor     Luis Nassif Onlineimagem de jose santos

As mídias sociais, que a cada dia aprimoram suas técnicas para fomentar a polarização de temas polêmicos, ficaram enlouquecidas com o rumor de que o neurocientista norte-americano Carl Hart havia sofrido racismo no Hotel Tivoli Moffarrej.
Para quem não se preocupa muito com o significado das palavras, vale lembrar que rumor não é uma mentira, mas também não é uma verdade. Trata-se de uma informação que precisa ser verificada – tarefa elementar do jornalismo.
Nestes tempos de mídias sociais, a propagação de rumores ganha velocidade e intensidade inimagináveis.
Curtidas, comentários e compartilhamentos em minutos ou horas após a divulgação das informações fazem o rumor se impor como verdade.
Poucos discutem o que está por trás de sua propagação. No caso de Hart, fica evidente que um grupo estava mais propenso a acreditar na versão de racismo, principalmente porque o Brasil desenvolveu formas mais perversas de praticar esse crime, entre elas a de fazê-lo parecer algo pontual, relacionado à resistência da sociedade diante de qualquer possibilidade de ascensão profissional e intelectual dos negros. Ontem foi Maju, hoje Hart, mas todos os dias esse crime é  cometido contra aqueles que não têm voz na imprensa. Por isso, o apelo à espetacularização é o pior recurso – causa impacto, mas imensamente efêmero.  
Outra explicação para a aceitação de um rumor é o clima maniqueísta adotado pela imprensa e pelas mídias sociais na abordagem dessas temáticas. Em uma sociedade dividida em dois grandes grupos, cegos pelo cólera e pelo revanchismo, histórias de discriminação, envolvendo um hotel de luxo e um grupo privilegiado de cientistas, palestrantes e uma plateia branca, são rapidamente aceitas, sem questionamento.
E o caso de Hart é bastante emblemático. O rumor do racismo foi livremente propagado. Somente no dia seguinte, ou seja, uma eternidade depois, os jornais resolveram fazer o que deveriam ter feito desde o início: checar as informações.
Ainda no calor da discussão, a Folha foi ouvir a versão do hotel, momento em que teve acesso ao vídeo de segurança, cujas imagens fragilizaram a primeira versão sobre a discriminação sofrida pelo cientista.
Com essas informações, a reportagem da Folha entrou em contato com Hart que, por e-mail, segundo o próprio jornal, teria desmentido a história, dizendo que entrou livremente no hotel.
Esta nova versão dos fatos foi um prato cheio para os que definem o racismo no Brasil como “excesso de mimimi” (expressão estupidamente infantil para temas densos). Há quem já acuse o cientista de “cavar” a história para ter mais visibilidade. E as opiniões, sobretudo as mais surreais, são propagadas com a mesma velocidade e intensidade de um rumor, pois alimentam a ira que diariamente ajudamos a construir durante o exercício do jornalismo e na mediação particular dos fatos do mundo.
Desmentir a versão de que Hart sofrera racismo já foi o suficiente para amenizar sua crítica em relação à ausência de negros no evento. E nem precisaríamos de Hart para esse tipo de constatação, pois essa é uma realidade escancarada e só não a vê quem realmente não quer.
Embora a discussão sobre racismo seja urgente, outro tema precisa também ganhar relevância: o dos eventos científicos realizados em hotéis de luxo.
E aqui o leitor precisa ficar atento porque não me refiro especificamente ao 21º Seminário Internacional de Ciências Criminais, do qual Carl Hart foi um dos palestrantes, mas parto de um evento científico realizado fora do ambiente acadêmico para ascender essa discussão ao nível necessário.
Há uma expressão chamada “scam conferences, que significa “conferências-golpe”, tema de uma excelente matéria assinada por Maurício Tuffani (Eventos Científicos “caça-níqueis”, preocupam cientistas brasileiros), publicada na Folha de S.Paulo, em março deste ano.
Essas conferências custam horrores, basta acessar a tabela de preço de suas inscrições, e costumam apelar para os chamados cientistas midiáticos. No exterior, como Tuffani aborda no seu texto, a validade e a seriedade desses eventos já são questionadas pelas instituições científicas.
Não há irregularidade alguma em cobrar taxa de inscrição para um evento científico, mas como pesquisadora formada com dinheiro público, de fomento à pesquisa, questiono os preços praticados para ouvir palestras de cientistas, na sua maioria, formados com dinheiro público e que, portanto, deveriam fazer a sua parte para tornar o conhecimento científico menos elitista e menos restrito a esses gabinetes.
Do mesmo modo, não há irregularidade alguma na realização de eventos científicos dentro de um hotel, mas sim uma discrepância sem precedentes em relação ao papel da ciência.
Não fazemos nem compartilhamos ciência dentro de um hotel, isso é criar bolhas e muros que, há anos, os divulgadores científicos tentam derrubar. Diante da complexidade do mundo, o abismo entre a produção científica e a sociedade precisa ser urgentemente reduzido e não ampliado.
Levar um debate de extrema relevância social para um hotel é, no mínimo, elitizar a ciência, o que, de imediato, já causa vergonha alheia.
Em janeiro, durante reunião com a diretora de uma importante instituição de pesquisa da Alemanha, fui questionada sobre as razões de o Brasil realizar eventos científicos fora das universidades, em hotéis e em centros de convenção de luxo. Constrangida, lembrei-me rapidamente da falta de estrutura física de muitos campi universitários, da falta de bons auditórios, de segurança e logística para receber bem os cientistas e o público, mas também não tive como esquecer que esse desmantelamento das instituições públicas de ensino e pesquisa ocorre com a nossa chancela.
Algumas universidades e faculdades particulares gozam de excelente espaço para sediar conferências científicas, garantindo a atmosfera que o compartilhamento e a transferência de conhecimento demandam.
Um evento científico realizado em um hotel, com preços à altura da infraestrutura oferecida, é o que há de mais contraditório nestes tempos de chacina no Brasil e de embarcações de refugiados na Europa.
O mundo não precisa de castas científicas, precisa do papel da ciência e do comprometimento dos homens da ciência.

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