Como a mídia
ajudou a construir
o‘mito’ deletério
que projeta
detonar a Democracia
HELENA MARTINS(*), na CARTA/CAPITAL
Nos últimos dez anos, o crescimento de candidatos de
extrema-direita e, inclusive, fascistas marcou e transformou o cenário político
em diversos países. Da França à Colômbia, milhões sofreram com o avanço
conservador. Aqui, seguimos caminho semelhante, com o pêndulo da consciência
social tendendo radicalmente à direita, com a permanência da cultura machista,
racista e homofóbica. E do estímulo ao ‘individualismo’ que, em contexto de
aumento do desemprego e da desigualdade, transforma o ‘outro’ – como o
imigrante ou os setores atendidos por políticas sociais – em inimigo. ||| Mas também é preciso chamar atenção para outra
instituição, que contribuiu muito na construção desse pensamento conservador: a
mídia. Muito tem sido falado sobre o impacto de notícias falsas e do uso de
dados pessoais para o direcionamento de mensagens moldadas na constituição da
extrema-direita brasileira. Foram os chamados grandes meios que produziram o
colchão sobre o qual hoje se deitam candidatos como Jair Bolsonaro. ||| O problema tem raízes profundas. Os
meios de comunicação, em especial a televisão, funcionam historicamente não
como uma representação da realidade, mas como “a própria realidade”. A mídia
atua na definição dos temas relevantes para a discussão na esfera pública, na
geração e transmissão de informações políticas, na fiscalização das
administrações públicas, na crítica das políticas públicas e na canalização de
demandas da população junto ao governo. Uma construção cotidiana, que agora
encontra outros canais de disseminação, como a Internet. ||| Parte dos eleitores que votam em Jair
Bolsonaro está desencantada com a política, vê nele o candidato da ‘mudança’ e
da ‘ética’ ou nele votam por considerá-lo uma expressão da antipolítica. Tais
percepções encontram pouca base de realidade, já que o candidato ocupa cargo
parlamentar desde 1991, usou de sua influência para eleger também os filhos, e
também está envolvido em diversos casos de corrupção e de favorecimento
político. ||| O que explica em parte esse sentimento
é a postura adotada pela mídia contra a política. Foi assim antes do Golpe
Militar de 1964, quando a chamada Rede da Democracia assumia a representação e
a expressão da opinião pública e desqualificava instituições clássicas como
partidos, sindicatos, o Congresso, etc. A Rede era liderada por João Calmon,
então deputado federal, presidente da Abert/Associação Brasileira de Emissoras
de Rádio e Televisão. ||| Após o fim da Ditadura, a mídia
novamente operou a construção de um discurso adversário em relação à
democracia, expresso na crítica permanente à política e aos políticos. Com
raras exceções – como durante o governo de Fernando Henrique, quando a imprensa
adotou uma postura complacente com o poder central e seu projeto. Após a
eleição de Lula, apesar da ausência de enfrentamento da concentração midiática
por parte do governo federal, volta a regra da postura adversária aos políticos
e à polícia, sobretudo após a Ação Penal 470, chamada de “mensalão”, na
Operação Lava-Jato e no processo de impeachment da Presidenta Dilma. ||| De uma cobertura crítica ao governo à
decisão editorial de apoiar o golpe, o impeachment de Dilma foi legitimado
perante à opinião pública pela divulgação seletiva das denúncias de corrupção;
pela exaltação e convocação a protestos favoráveis à destituição da
Presidenta; e pela fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação
do contraditório. ||| Nessa construção, a centralidade
imputada ao PT como causador de todos os problemas e mazelas sociais. Mas é
fato que a corrupção, a crise econômica e outros problemas não nasceram com os
petistas. Ao passo em que alimentava essa percepção ilusória, a mídia abria
espaço para figuras do MBL/Movimento Brasil Livre – eleitos nos dois últimos
pleitos – e para expressões ultraconservadoras, sem cobrar delas nada mais que
frases fáceis, embora incapazes de solucionar problemas complexos. ||| Os discursos reiterados em torno da
defesa das reformas trabalhista e previdenciária, apresentadas na Globo e
demais veículos conservadores como “necessárias” e “essenciais” para “sanar as
contas públicas”, agora também legitimam as propostas de retirada de direitos e
de privatização defendidas por Bolsonaro. Agora, no período eleitoral, o país
padece de debate sobre programas de governo, sobrando-lhe discursos rasos que
circulam pelas redes e ganharam a mente de milhões de brasileiros alicerçados
no tripé antipolítica, antiPT e ultraconservadorismo(ou nazifascismo, como
queiram). ||| Por meio da forma enviesada de tratar
questões como a segurança pública e a situação econômica do país, os meios de
comunicação também ajudaram a construir o “mito” e seus asseclas. Agora estamos
todas e todos assustados com os discursos violentos proferidos por Bolsonaro,
mas falas semelhantes ocupam, há anos, a TV. Ou não ganharam popularidade, por
meio dos programas policialescos, expressão como “bandido bom é bandido morto”,
“direitos humanos para humanos direitos” e tantas mais? Tudo isso ocorreu sem
que a sociedade e os órgãos públicos responsáveis pela proteção aos direitos
humanos agissem contra tais violações de direitos, em emissoras que, vale
lembrar, são concessionárias públicas. ||| O mesmo país que, por não ter feito o
balanço do período militar, inclusive do apoio dos principais meios de
comunicação a ele, não conhece o que de fato ocorreu durante a Ditadura e então
se abre a falas que naturalizam sua volta.
É este o tamanho do risco que vivemos. Mesmo assim, Record e Band já definiram seu
apoio a Bolsonaro, violando inclusive a lei eleitoral. Articulistas e
apresentadores da Globo seguem na linha de que não há mal maior ao país que o
PT. Tudo indica que a democracia afundará também por conta do perverso e
excludente sistema midiático.
(*) Helena
Martins, é jornalista, doutora em Comunicação pela UnB e professora da
Universidade Federal do Ceará.
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