Brasil, de golpe a golpe
A história republicana está a
sugerir uma categoria de golpe operado dentro da ordem institucional-legal
vigente...
Roberto Amaral
As definições correntes dizem-nos que os golpes de Estado se caracterizam pela surpresa, pela violência militar ou civil e pela ilegalidade.
Ilegalidade, evidentemente, em face da ordem legal
que fraturam, pois, na sequência, o golpe de Estado vitorioso (e só esse conta)
impõe sua própria legalidade.
Malogrado, o golpe de Estado é condenado como
crime político; vitorioso, transforma-se em fonte de poder e de direito,
autoritário ou não.
Nossa História é farta em exemplos de golpes de
Estado, desde o Primeiro Reinado, mas nem todos podem ser classificados como
ilegais, exatamente por terem sido operados dentro da ‘ordem’ e, portanto, sem
violência e sem determinarem rupturas constitucionais.
Assim,
por exemplo, a insubordinação das tropas que 1831 levou o primeiro Pedro à
abdicação do trono, e, mais tarde o ‘Golpe da maioridade’ (assim foi registrado
pela História) que levaria seu filho ao trono em 1840, aos 15 anos
incompletos.
O fato histórico Proclamação da República, porém,
apresenta as características clássicas dos golpes de Estado, a saber, a
ilegalidade (o levante das forças armadas contra seu chefe supremo e o
regime que juraram defender) e a ruptura da ordem constitucional, com a queda
do Império.
A rigor, a implantação da República tem no golpe
de 1889 apenas o seu parto, pois o novo regime só se consolidaria, ainda
criança, com o golpe, de explícita ilegalidade, do marechal Floriano Peixoto
(1891), investindo-se na presidência após a renúncia de Deodoro, contra o
ditado da Constituição republicana recém aprovada.
Nesta República de muitos golpes e contragolpes, dois golpes clássicos merecem destaque, a saber, um, que rasgando a
Constituição de 1934 instituiu a ditadura do ‘Estado Novo’ (1937),
e aquele outro que em 1º de abril de 1964 instaurou a ditadura militar, decaída
em 1984.
A característica comum de todos eles, é a ruptura
da ordem constitucional, nos dois últimos casos mediante a violência, compreendendo
alteração institucional e instauração de regimes de exceção caracterizados pela
repressão policial-militar, a revogação dos direitos individuais e das
garantias constitucionais, a supressão das liberdades – especificamente das
liberdades de imprensa, de
reunião e de associação – e a revogação dos mecanismos da democracia
representativa (‘Estado Novo’) ou sua vigência custodiada pelo novo regime
(1964-1984).
Mas a história republicana está a sugerir uma
categoria de golpe de Estado que, alterando a composição do Poder, a função e o
objeto de todo e qualquer golpe ou insurreição ou revolução, se opera dentro da
ordem institucional-legal vigente.
Lembro, a propósito, dois episódios recentes de
nossa história, o 11 de novembro de 1955 e a instituição, em 1961, do
parlamentarismo. Ambos formalmente legais e ambos curatelados pelos militares e
ambos operados pelo Congresso Nacional
O primeiro decorreu de reação de setores militares
legalistas, comandados pelo ministro da Guerra, o general Henrique Lott, à
manobra comandada pelo presidente da República e seus ministros da Aeronáutica,
da Marinha e da Casa Militar, visando a impedir a posse de Juscelino Kubitschek e
João Goulart, eleitos presidente e vice-presidente da República.
Diante da reação do Exército, o Congresso decretou
numa assentada o impedimento do presidente em exercício (Carlos Luz, presidente
da Câmara dos Deputados) e, seguindo a ordem da sucessão constitucional,
empossou Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, no cargo.
O fato foi apresentado como ‘contragolpe
legalista’ e, assim, festejado. Em outras palavras, o Congresso, atendendo à
voz majoritária das Forças Armadas, e no rigor de sua competência
constitucional, dava um golpe de Estado (o impedimento dos presidentes), para
impedir, eis sua justificativa em busca de legitimação, o golpe de Estado que
visava a fraturar a Constituição, impedindo a posse dos eleitos.
De forma similar, tivemos o golpe parlamentarista
de 1961, já referido, quando o Congresso Nacional, diante da sublevação militar
que intentava impedir a posse do vice João Goulart (episódio decorrente da
renúncia de Jânio Quadros), revogou o presidencialismo e aprovou a implantação pro tempore do parlamentarismo.
Nas duas situações agiu o Congresso Nacional nos
termos de sua competência constitucional.
E, lamentavelmente, parece que fizemos
escola.
Similarmente o Congresso paraguaio, em 2012,
revogou, mediante impeachment, o mandato do presidente Fernando Lugo e o
Judiciário hondurenho decretou, em 2009, a deposição e prisão do presidente
José Manuel Zelaya.
Se o golpe de Estado, em regra, é promovido contra
um governante, em 1937, no Brasil, foi a arma de que lançou mão o próprio
governante, para fazer-se ditador, donde não ter havido mudança de mando nem de
controle do poder.
O golpe clássico – com a deposição do governante—
é substituído pela mudança de governo, mantido o governante.
O golpe, faz-se por dentro, manipulado pela
burocracia estatal associada a segmentos da classe dominante. É quando o golpe
também pode operar-se de forma lenta e continuada, sem ruptura
institucional mas determinando alterações na ordem constitucional.
Neste caso, o que caracterizaria o golpe de Estado
(ou essa espécie de golpe por dentro do sistema) seria a alteração de
poder sem violência e dentro da ordem legal, ou seja, utilizando-se da própria
ordem legal para fazer as alterações requeridas pelo novo projeto de poder.
Permanece a definição de golpe de Estado
porque sua efetividade determina uma nova coalizão de poder, ao arrepio
da soberania popular.
É um golpe de Estado que não pode ser acoimado de
ilegal.
Essas reflexões tentam compreender a crise
constituinte brasileira de hoje ao identificar a operação de um ‘golpe’
dentro do Estado, comandado internamente por uma burocracia estatal, autônoma
em face da soberania popular e dos instrumentos da democracia representativa.
Essa burocracia governativa opera em condomínio
com forças poderosas do capital concentrado, cujo objetivo é, na contramão do
pronunciamento eleitoral de 2014, restaurar o controle neoliberal sobre a
economia e o Estado.
O cerco do Estado em função dessa política sem
voto mas representativa do poder econômico revela seus primeiros movimentos
ainda em 2014, quando, perdidas as eleições, decide o grande capital a
tomada do governo, impondo-lhe a política rejeitada eleitoralmente.
Nesse sentido, operou e opera de forma desabusada
a imprensa monopolizada, ecoando o que lhe dita a direita.
Seu primeiro fruto foi o ajuste fiscal, mas a
ele não se limitou, impondo todo o receituário neoliberal: privatizações, precarização das
relações de trabalho, independência do Banco Central, política de juros altos,
as medidas recessivas que constroem o desemprego e, com audácia jamais vista, a
fragilização da Petrobrás, para
que se torne irrelevante e possibilite que o Pré-Sal, maior reserva de
hidrocarbonetos descoberta no planeta nos últimos 30 anos, seja capturado pelas
grandes petroleiras privadas mundiais.
Para tanto chegou-se ao requinte: a empresa,
atacada por escândalos e pela crise internacional do petróleo, é desmoralizada,
a queda de suas ações em bolsa é atingida pela especulação e pela campanha de
descrédito da grande imprensa, e nesse quadro anuncia-se a redução dos investimentos
e para a venda de ativos na bacia das almas.
A agenda do governo é ditada pelos adversários do
governo, e dentro dele estamentos burocráticos autarquizados – setores do
Ministério Público, setores do Judiciário, setores da Polícia Federal –
associados à grande imprensa – operam no sentido da desestabilização do governo.
Juiz de estranha jurisdição nacional preside como
se delegado fôsse inquérito que lhe caberia sanear e julgar com isenção;
procuradores, promotores e juízes, até mesmo ministros de tribunais superiores, antecipam juízos sobre
pessoas que estão sendo ou serão por eles julgadas, a prisão preventiva é
transformada em instrumento policial que visa a obter delações
premiadas.
A imprensa, irresponsável em sentido pleno,
transforma o acusado em condenado semsursis e o submete à execração pública
irreparável. O Congresso, comandado política e ideologicamente por uma oposição
numericamente minoritária, opera o desmonte das conquistas sociais das últimas
décadas.
O governo, nascido das bases populares da
sociedade, opta pelo acordo de cúpula com os Partidos, tornando-se prisioneiro
de uma base parlamentar infiel, desleal e extremamente cara.
Necessitado do apoio social, faz concessões às
forças conservadoras; afasta-se das massas sem demover a direita de seu projeto
golpista.
Quem não se inspira na história está condenado a
repeti-la, repetindo seus erros.
Abalizada análise da conjuntura brasileira!
ResponderExcluir