A
suspeição de que o jornalismo tucano consegue balbuciar em meio às alvejantes
declarações de Mirian Dutra sobre a parceria público privada para silenciá-la
no governo FHC, carrega um efeito bumerangue demolidor.
Pode
ser respondida com uma arguição.
‘Quem
publicaria antes, a história que furou um cerco de 23 anos de obsequiosa
cumplicidade da mídia brasileira com esses acontecimentos, para somente agora
vir a público num relato demolidoramente crível? (‘Só eu tenho condições de
levar este país’, dizia o príncipe à jovem plebeia, há um mês da conquista).
Mirian
Dutra abriu o quartinho de despejo dos anos 90. E mostra o que tem lá dentro.
Sua
fala carrega a credibilidade de quem –convencida ou conivente-- fez parte do
acervo.
O
que avulta nessa visitação retrospectiva são os bastidores de um projeto
de poder e de interesses que se blindaram para mudar a lógica do
desenvolvimento brasileiro.
‘Coveiros
do ciclo Vargas’ não era assim que se jactavam aos mercados? Terceirizar
o timão brasileiro ao mercado internacional requeria um método para vencer a travessia
politicamente espinhosa.
O
método, baseado num pacto granítico entre a mídia, os interesses afluentes e o
vale tudo ético, é o que guarda o quartinho escuro escancarado agora.
Mirian,
num dado momento, tornou-se um cisco no olho guloso do visionário do neorenascimento bancado pelo capital financeiro global, e que se via como o
Micheangelo Buonarroti da Capela Cistina brasileira.
Foi
preciso expurga-la. O que se fez com a mesma determinação ética e a coesão
grupal dos interesses que se fundiram na travessia preconizada para o país.
Surpreende
que a mídia isenta tenha fugido dessa personagem por 23 longos anos,
dispensando-lhe uma mordaça de silencio e dissimulação conivente?
Que
veículo ou editor da chamada grande mídia teria bancado antes, e com o destaque
merecido, a nova e demolidora entrevista concedida pela 'ex' de Fernando Henrique
Cardoso, neste final de semana, a(AQUI) um
veículo alternativo?
Será
necessário lembrar que na anterior, feita pela Folha de São Paulo, perguntas e
nominações essenciais envolvendo a mídia foram evitadas?
E
que depois disso o veículo dos Frias –cumprida a formalidade das aparências—
suprimiu o assunto da primeira página mostrando estranha inapetência
investigativa diante de pautas que gritam?
Quais?
Por
exemplo, a história do jornalista lobista, já falecido, Fernando Lemos.
Personagem expressivamente próximo de FHC, cunhado de Mirian Dutra, foi ele que
mediou a participação da Brasif na operação para tirar Mirian do país e assim
salvaguardar o tucano de constrangimentos na reeleição.
Lemos
fez dinheiro no governo FHC com serviços de consultoria. Muito dinheiro.
Participou do círculo estrito do poder que decidia inclusive as campanhas
políticas de FH. Sua viúva, Margrit Schmidt, segundo a própria irmã
contou ao Diário do Centro do Mundo, possui ‘apartamentos, um
terreno em Trancoso que vale ‘um milhão’ e conta no Canadá’.
Mas
ainda recebe recursos públicos como funcionária lotada no gabinete de José
Serra, onde nunca comparece. Resquícios da ‘modernização’ das capitanias
hereditárias pelo avanço neoliberal.
Eterno
aspirante à presidência da República, Serra se declara velho amigo e
parceiro de ideias da funcionária-fantasma, que brada contra a corrupção
e a ‘corja’ do PT’ no facebook. Serra também é amigo
muito próximo do pecuarista Jonas Barcellos, que bancou Mirian e ganhou rios de
dinheiro com o monopólio dos freeshops no governo do PSDB.
Guarda
esse tipo de álbum de recordações o quartinho de despejo dos anos 90 agora
entreaberto, mas que a mídia quer lacrar e implodir.
A
indiferença ética, o tráfico de influência e a lubrificação do dinheiro público
a serviço do interesse particular condensados no episódio Mirian Dutra, não
formam, como se vê, um ponto fora da curva no modo tucano de governar as
relações entre Estado e mercado; entre capitalismo e democracia, enfim, com
papel subalterno ao segundo elemento da equação.
Se
pouco disso transparece ainda no debate político, deve-se ao protagonista
ubíquo dessa trama.
A
mídia figura como o grande Rasputin a coordenar os personagens desse ambiente
farsesco em que as aparências não apenas são avalizadas, mas diretamente
modeladas, conduzidas mesmo pelo poder midiático até a asfixiante rendição à
narrativa pronta nas redações.
Ou
Mirian Dutra não foi ‘induzida’ a dizer à Veja a frase para a qual Veja já
tinha espaço, lugar e título, antes que a personagem soubesse que sua boca iria
emiti-la?
Esse
o paradigma da isenção que ordenava e ainda rege o sistema do monopólio emissor
consolidado sob as asas do ciclo do PSDB na presidência do Brasil.
O
maior conglomerado de comunicação do país e a principal revista semanal do
mercado brasileiro –as Organizações Globo e a semanal Veja-- não
apenas informaram um script conveniente à reeleição de FH.
Elas
ajudaram ativamente a produzi-lo --a exemplo do que fez a Folha nos anos 70,
quando cedeu carros à repressão.
O tour de force para
despachar Mirian é só um exemplo em ponto pequeno do empenho que movimentou
grandes massas de interesses para o ciclo privatizante que viria então.
Nenhuma
delação extraída pelo método da chantagem coercitiva, tão bem manuseado pela
República do Paraná, carrega a delicadeza convincente desse desabafo –ao que
tudo indica apenas iniciado—de uma mulher que talvez não tenha mais nada a
perder.
Recém
demitida pela Globo, Mirian provavelmente perdeu também a mesada que recebia de
FHC e viu a relação com o filho ser trincada pela intempestiva intervenção do
tucano que –em troca de um DNA polêmico-- supriu Tomás com mesada
própria, comprou-lhe um apartamento, pagou-lhe os estudos em caras
universidades norte-americanas.
A
mãe do filho que FHC lhe dizia que não poderia ter em seu nome decidiu agora
reagir com o que tem de mais letal: a memória.
Mirian
Dutra apenas começou a falar. Parece que tem muito a dizer: ’Serra eu conheço
bem...’, cutucou de relance na última entrevista.
Desde
o início desse episódio Carta Maior tem insistido em que as relações entre um
homem e uma mulher formam um assunto privado.
Mas
a participação da mídia, de concessionárias públicas, bancos estatais e
paraísos fiscais no caso fazem dele um tema público.
Foi
a cobiça e a ganância econômica que politizaram o encontro entre o
sociólogo cinquentão e a jornalista jovem; não o inverso.
A
descrição impressionantemente crível, repita-se, do método tucano que
Mirian Dutra relata em detalhes dá materialidade a tudo o que o PSDB ora
denuncia e atribui aos adversários, sobretudo ao PT.
É
um revés de dimensões esfarelantes.
As
revelações em conta gotas trazem um olhar de dentro do fastígio das elites no
poder nos anos 90.
Um
olhar de alguém que circulou nas vísceras do condomínio cristalizado na farra
da privatização, quando se desferiu um dos mais virulentos ataques à luta pelo
direito a um desenvolvimento justo e soberano.
Conhece-se
o custo contábil do desmanche patrimonial que fragilizou a capacidade
articuladora do Estado e definhou a governabilidade democrática,
subordinada desde então à supremacia dos capitais desregulados.
Abre-se
a possibilidade agora de se iluminar o interior da engrenagem
rapinosa.
Não
para produzir uma arqueologia do revide.
Não
para se nivelar ao vale tudo dos que buscam aniquilar as forças e
lideranças empenhadas na reversão do desmonte para construir uma democracia
social no coração da América Latina.
O
que está em jogo não é o passado; é a urgência de se devolver esperança ao
futuro.
O
passo seguinte do desenvolvimento brasileiro enfrenta uma encruzilhada
histórica. Um ciclo de crescimento se esgotou; outro precisa ser repactuado em
novas bases.
Muitos
dos personagens e interesses econômicos que atuaram no episódio Mirian Dutra –
FHC, Organizações Globo, Veja, Jorge Bornhausen, José Serra etc—
compõem a linha de frente da ofensiva conservadora atual,
determinada a retomar o poder, custe o que custar, para concluir o serviço
dos anos 90.
O
mapeamento dessas peças do xadrez ganha luminosidade desconcertante nas
revelações de Mirian Dutra.
Elas
permitem recompor a seta do tempo que une a lógica e a ética dos anos 90 ao
projeto intrínseco ao golpismo em 2016 .
Detalhar
essa cruzada é uma das tarefas jornalísticas mais importantes do momento.
A
ela se debruça Carta Maior na matéria ‘Lei para Todos’, desta edição.
Estão
radiografados ali elos explícitos e dissimulados.
É
impressionante como os elementos se interligam e convergem, muitas vezes para
um mesmo espaço: os paraísos fiscais: FHC, Brasif, negócios e
propriedades dos Marinhos, BNDES, lobistas, empresas de fachada, mansões,
helicópteros e personagens referenciais da extrema direita brasileira, como
Jorge Bornhausen.
O
colunismo da indignação seletiva não fará esse garimpo do qual é a parte mais
comprometida cascalho.
O
ressentimento autoexplicativo de Eliane Cantanhede (‘ que sempre soube dessa
história’, fuzilou Mirian Dutra) mostra como o jornalismo ‘isento’ sentiu o
golpe de uma peça lateral do acervo, que mobilizou a parte graúda do tabuleiro
para ser deslocada há 23 anos, e agora volta ao jogo revirando a mesa.
Ao
falar é como se Miriam gritasse: 'O Rei está nu'.
Não
só ele, porém; toda a corte ao seu redor e, sobretudo, o seu projeto de volta
ao poder.
Daí
o alvoroço dos mensageiros do trono.
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