Mariana e a mercantilização
do meio ambiente
O Brasil deve recuperar a natureza pública de seus recursos naturais e romper com a lógica mesquinha da mercantilização desse potencial estratégico...

A catástrofe de Mariana e a ação criminosa desenvolvida pelas empresas Samarco e Vale trazem ao centro da cena o debate a respeito do processo de mercantilização crescente da ação do ser humano sobre o meio ambiente. O aprofundamento da tendência de acumulação de capital em escala planetária tem transformado, de forma crescente e alarmante, a exploração dos recursos naturais em mais um espaço de multiplicação dos ganhos econômicos e financeiros.
Na perspectiva da reprodução ampliada da acumulação do capitalismo, tudo se transfigura. Água não é mais apenas água. Mar deixa de ser simplesmente mar. Atmosfera passa a significar muito mais do que a mera atmosfera. A definição de subsolo extrapola o limitado sentido de tudo que está baixo do solo. Alguém aí mencionou preocupação com equilíbrio ecológico sistêmico ou com os riscos para o futuro do planeta? Bobagem! Don’t worry, my dear! A eficiência racional do empreendimento privado nos assegura que tudo o que for feito será para o bem de todos.
Mercantilização: dos serviços públicos
ao meio ambiente
No caso brasileiro, a onda neoliberal dos anos 1990 conseguiu avançar na privatização de importantes setores que, tradicionalmente, eram encarados como sendo de fornecimento de bens e serviços públicos. Dessa forma, os horizontes de investimento capitalista se ampliaram para além da energia, das comunicações, dos transportes, da segurança, da previdência, da educação e da saúde – só para citar apenas alguns exemplos. Passaram todos a se constituir em ramos de possível acumulação de capital.
Esse movimento se combina à ampliação também do potencial de exploração “empreendedora” sobre o meio ambiente. A opção por definir políticas públicas prioritárias para o novo modelo de exploração pós-colonial (re) transformou nosso País em explorador e exportador de produtos primários. Sejam eles associados às atividades do complexo do agronegócio concentrador e espoliador, sejam aqueles associados à extensa rede da extração de produtos minerais.
de um grande empreendimento econômico cujo único foco seja a maximização de resultados para os ganhos exclusivos de seus proprietários e acionistas. Ao contrário do que tentou divulgar uma parte dos meios de comunicação, não existiu nada de “natural” nem de “inevitável” naquele terrível acidente. Ou que a empresa teria sido, ela também, “vítima” do imponderável, como chegou a declarar um secretário do governo de Minas Gerais.
Eficiência (sic) privada leva à catástrofe
Muito pelo contrário, todos os indícios apontam para a negligência da Samarco e de órgãos públicos municipais, estaduais e federais envolvidos no tema. As licenças e autorizações de funcionamento da mina e da barragem haviam vencido meses antes do ocorrido e nada foi feito para corrigir essa falha. Outras minas e barragens semelhantes apresentam riscos parecidos e a população da região próxima vive, há tempos, um clima de tensão permanente a respeito da possibilidade de novas rupturas.
No entanto, como a dinâmica empresarial se move apenas pela lógica da maximização de resultados, as corporações solenemente ignoram a necessidade de realizar despesas para minimização de riscos ou mesmo interromper as atividades para evitar eventos indesejados. Não! Em busca do lucro, aceleram-se os padrões de exploração dos minérios, custe o que custar.
Doações eleitorais e rabo preso
Pouco a pouco, à medida que as informações relativas a doações para campanhas eleitorais começam a ser reveladas, percebe-se de forma mais cristalina o impressionante poder que a Samarco e a Vale exercem sobre os agentes públicos. Quase todo mundo - em todos os níveis da administração pública e em todos os grandes partidos políticos - estava de rabo preso. Haviam recebido recursos milionários para custear as despesas do pleito e não ousavam aplicar à Samarco as regras da lei e as punições cabíveis.
Os valores de multas inicialmente aventados revelam-se insuficientes face à dimensão dos malefícios causados e tornam-se irrelevantes frente a casos comparáveis em outros locais e países. Por outro lado, os valores tornados públicos para promover as indenizações relativas à reparação de danos e perdas humanas, materiais e ambientais tampouco são suficientes para dar conta das necessidades contabilizadas.
O que é mais bilionária: indenização ou sonegação?
A British Petroleum, por exemplo, fez um acordo para pagar US$ 21 bilhões ao governo norte-americano, como indenização das consequências do acidente provocado por vazamento de óleo no Golfo do México em 2010. Ora, esse montante equivalente a R$ 75 bi é muito superior aos levantamentos iniciais de R$ 10 a 14 bi para o que ocorreu com a mina da Samarco. E a maioria dos especialistas avalia que os impactos do caso brasileiro são muito mais custosos do que o da BP. Mas os espaços dedicados na imprensa ao tema costumam chamar a atenção para as dificuldades da empresa - coitadinha! - em dar conta de tal responsabilidade.
Pouco se fala a respeito de possibilidade de cobertura do sinistro recorrendo ao expediente do resseguro. Esse procedimento é obrigatório em empreendimentos desse porte e a sociedade brasileira gostaria de saber a quantas anda esse dossiê. E mesmo, no limite, nada se debate sobre alternativa da União se valer do expediente da estatização do patrimônio da empresa concessionária e de sua controladora para fazer face a tal obrigação. Esses são casos típicos em que se pode aplicar o recurso à desapropriação de ativos privados. Inclusive pelo fato de que a Vale encabeça a lista dos maiores grupos devedores à União, com quase R$ 42 bilhões de dívidas tributárias não quitadas. Em português claro: crime de sonegação.
É claro que não se pode assegurar que, fosse a Vale ainda uma empresa estatal do governo federal, um acidente desse porte jamais teria acontecido. No entanto, o fato de ela estar na esfera pública, de forma mais transparente e direta, certamente poderia contribuir para um sistema mais adequado de controle de seu desempenho operacional. Isso porque a situação atual - por mais contraditório que possa parecer - da trama de poder da Vale envolve uma participação acionária majoritária do BNDES e de fundos de pensão vinculadas a empresas estatais. Isso significa dizer que a União teria 60,5% do poder na assembleia de acionistas. Ou seja, a velha estória de recursos públicos sendo apropriados e comandados pelo capital privado.
Enfim, seja a Vale um empresa estatal ou privada, o fato relevante é que as orientações de sua exploração sobre o solo e subsolo de nosso País devem passar por uma profunda reavaliação. Isso significa recuperar a natureza pública de nossos recursos naturais e romper com a lógica mesquinha da mercantilização desse potencial estratégico. Afinal, exportar minério de ferro extraído do Brasil a preços aviltantes para uma empresa do grupo na China e importar os trilhos lá manufaturados para construir as suas ferrovias em território brasileiro não é a melhor solução.
(*) Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris-10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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