domingo, 5 de novembro de 2017

O papel da Globo e da classe média no golpe de 2016 e no retrocesso que  atinge o país
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JESSÉ SOUZA (*), no JORNAL/GGN

A CLASSE MÉDIA COMO CAPATAZ DA ELITE
Resultado de imagem para Fotos de Jessé  SouzaEste artigo é o resumo parcial de um fio condutor que percorre meu último livro lançado em setembro último, pela editora Leya, com o título “A Elite do Atraso: da escravidão à lava jato”. Nesse livro, busco enfrentar o desafio ambicioso de formular uma gênese histórica alternativa à narrativa hoje dominante, seja na direita ou na esquerda, do espectro político na sociedade brasileira contemporânea. Embora no livro reconstrua a escravidão e seus efeitos desde o Brasil-Colônia, aqui a limitação de espaço me obriga a inquirir acerca de sua feição mais moderna. Como se constrói, no século XX, uma sociedade que reproduz todas as iniquidades do ódio, humilhação e desprezo contra os mais frágeis que caracterizam a escravidão?  |||  Minha tese é que isso foi realizado como programa político conduzido conscientemente pela elite econômica, em primeiro lugar a elite paulistana, como forma de assegurar para si a condução ideológica da sociedade e limitar a ação política dos setores populares, mesmo em um contexto de sufrágio universal. A astúcia da elite foi perceber, já no início do século XX, quando uma classe média começa a despontar de modo incipiente nas grandes cidades brasileiras, que se os pobres poderiam ser oprimidos pelo cassetete e pelo fuzil dos policiais, a classe média exigia uma estratégia alternativa. Ao contrário da violência material, aplicada indiscriminadamente contra os pobres,  a violência contra a classe média teria que ser “simbólica” para produzir cooptação e “convencimento”.  |||  A perda do poder político para Getúlio Vargas vai ser o ponto de inflexão dessa estratégia. Tendo perdido o poder político, a elite econômica paulistana vai se utilizar de seu “poder material” para construir as bases do seu “poder simbólico”. A ideia guia foi a percepção da necessidade de se construir uma hegemonia ideológica como forma tanto de reconquista do poder político como para limitar o poder dos eventuais inimigos de classe alçados ao controle do Estado.  |||  A classe média não é necessariamente conservadora. Também não é homogênea. O “movimento tenentista”, conhecido como o primeiro movimento político comandado pelos “setores médios” no Brasil, revela bem essas características. Ainda que tenha sido protagonizado por oficiais militares de baixa e média patente (daí o nome tenentismo) a partir dos anos 20 do século passado, esse movimento já refletia a nova sociedade mais urbana e moderna que se criava. A parte rebelde da instituição militar era uma expressão desses novos anseios.  |||  A oposição ao pacto conservador da “república velha”, com suas eleições fraudadas e restritas, era o ponto de união entre os tenentistas. Dentro do movimento, no entanto, conviviam desde as demandas liberais por voto secreto e por maior liberdade de imprensa, até o desejo de um Estado forte como meio de se contrapor ao mandonismo rural. Parte do grupo se radicalizou politicamente na “coluna Prestes”, cujo líder, Luís Carlos Prestes, ingressaria décadas depois ao PCB-Partido Comunista do Brasil(fundado em 1922). Parte do grupo se alinhou desde a(chamada) Revolução de Trinta com Getúlio Vargas enquanto outra parte ainda lhe exerceu ferrenha oposição todo o tempo. O nosso primeiro movimento político com claro suporte e apoio da classe média mostrava a extraordinária multiplicidade de posições políticas que essa classe pode abrigar.  |||  Quando Sérgio Buarque de Holanda elegeu o “patrimonialismo” das elites que habitam o Estado como o grande problema nacional,  não estava dando vida, portanto, a qualquer sentimento novo. A corrupção do Estado era uma das bandeiras centrais do tenentismo. A falta de “homogeneidade de pensamento” dos tenentes, sua confusão em relação à hierarquia das questões principais, refletia uma carência real. Poder-se-ia, por exemplo, perceber a corrupção do Estado como efeito de sua captura pela própria elite econômica que o usa para defender e aprofundar seus privilégios. Isso teria levado a uma conscientização coletiva dos desmandos de uma elite apenas interessada na perpetuação de seus privilégios.  |||  Não foi essa a interpretação que prevaleceu. A elite do dinheiro paulista, que havia perdido o poder político, ainda que mantido o poder econômico, agiu de modo astucioso, calculado e planejado. Percebeu claramente os sinais do novo tempo. A truculência do “voto de cabresto” estava com os dias contados. Ao invés da “violência física” deveria entrar no seu lugar a “violência simbólica” como meio de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios. Com o Estado na mão dos 'inimigos', a elite do dinheiro paulistana descobre a “esfera pública” como arma. Se não  controla mais a sociedade com a farsa eleitoral acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O domínio da “opinião pública” parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos. O que estava em jogo  era a captura agora intelectual e simbólica da classe média letrada pela elite do dinheiro formando a “aliança de classe dominante” que marcaria o Brasil daí em diante.  |||  Como se construiu esse projeto no alvorecer do século XX? A USP/Universidade do Estado de São Paulo foi criada por essa mesma elite desbancada do poder político, e pensada como a base simbólica, uma espécie de 'laboratório de ideias' gigantesco do liberalismo brasileiro  desse projeto urdido para contrapor a força das ideias generalizadas na sociedade ao poder estatal, desde que esse fosse ocupado pelo inimigo político à época representado por Getúlio Vargas. Sérgio Buarque é menos o criador e mais o sistematizador convincente do moralismo “vira lata” que irá valer, a partir de então, como versão oficial pseudocrítica do país acerca de si mesmo. Como o “Estado corrupto” passa a ser identificado como o mal maior da nação, a elite do dinheiro ganha uma espécie de “carta na manga” que pode ser usada a partir de então, sempre que a “soberania popular” ponha, inadvertidamente, alguém contrário aos interesses do poder econômico.  |||  A partir desse eixo intelectual eivado de prestígio, essa concepção se torna dominante no país inteiro. Desde essa época, o liberalismo conservador, baseado no falso moralismo da “higiene moral” da nação, será a pedra de toque da arregimentação da classe média criada nessa quadra histórica pela elite do dinheiro. O discurso moralista já havia mostrado todo seu potencial de arregimentar e convencer sua clientela já na década de 1920 do século passado com o movimento tenentista. Os “tenentes”, oficiais das forças armadas mais jovens, de baixa e  média patente, pretendiam a “renovação moral” da nação de cima para baixo. O Estado Novo de Getúlio foi um locus privilegiado para vários deles, ainda que disputas intestinas tenham levado vários a trocar de lado com o tempo. O tenentismo havia mostrado a eficácia desse novo discurso típico da classe média.  |||  As classes sociais estão sempre disputando não apenas bens materiais e salários, mas, também, prestígio e reconhecimento, ou, em uma palavra, legitimação, do próprio comportamento e da própria vida. As classes superiores, que monopolizam capital econômico e cultural, têm que justificar, portanto, seus privilégios. O capital econômico se legitima com o “empreendedorismo”, de quem “dá emprego” e ergue impérios, e com o suposto bom gosto inato de seu estilo de vida, como se a posse do dinheiro fosse mero detalhe sem importância.  |||  A legitimação dos privilégios da classe média é distinta. Como seu privilégio é invisível pela reprodução da socialização familiar que esconde o trabalho prévio de “formar vencedores”, a classe média é, por excelência, a classe da da meritocracia e da superioridade moral. Eles servem tanto para distingui-la e para justificar seus privilégios em relação aos pobres como também aos ricos. Se os pobres são desprezados, os ricos são invejados. Existe uma ambiguidade nesse sentimento, em relação aos ricos, que vincula admiração e ressentimento. A suposta superioridade moral da classe média, dá a sua clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representar o 'melhor' da sociedade. Não só a classe que “merece” o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia da meritocracia propicia; mas, também, a classe que tem algo que ninguém tem, nem os ricos, que é a certeza de sua “perfeição moral”.  |||  É claro que a “perfeição moral” pode muito bem tomar o caminho que enseje uma abertura ao tema da responsabilidade social com os estratos mais frágeis, como aconteceu  em muitos países europeus. Um caminho, aliás, já aberto pelo Cristianismo, “secularizado” em proposições políticas. Que entre nós a “perfeição moral” tenha tomado a forma estreita de reação à corrupção apenas no Estado – e aí apenas quando ocupado por líderes populares – é reflexo da bem perpetrada manipulação intelectual e política destinada a tornar a classe média massa de manobra dos endinheirados.  |||  A elite do dinheiro soube muito bem aproveitar as necessidades de  de autojustificação dos setores médios. “Comprou” uma inteligência para formular uma “teoria liberal moralista” feita com precisão de alfaiate para as necessidades do público que queria arregimentar e controlar. Esse tipo de “compra” da elite intelectual pela elite do dinheiro não se dá apenas nem principalmente com dinheiro. São os “mecanismos de consagração” de um autor e de uma ideia seguindo, aparentemente, todas as regras específicas do campo científico. Mas a quem pertencem os jornais, as editoras e os bancos e empresas que financiam os prêmios científicos? Desse modo, sem parecer “compra”, o expediente é muito mais bem sucedido. Depois, usou sua posição de proprietária dos meios de produção material para se apropriar dos 'meios simbólicos' de produção e reprodução da sociedade. É aqui que entra o contexto existente até hoje entre imprensa, universidade, editoras e capital econômico.  |||  Como o dinheiro não pode aparecer comprando diretamente os valores que guiam as esferas da cultura, do conhecimento e da informação, essas esferas precisam construir “mecanismos de consagração” internos como se fossem infensos à autoridade do dinheiro e do poder. Isso explica em grande parte que tanto a direita quanto a esquerda tenha se deixado colonizar por esse tipo de prática e de discurso.  |||  Todo o discurso elitista e conservador do liberalismo brasileiro está contido em duas noções que foram desenvolvidas na USP – a universidade criada pela elite ante estatal paulistana – e que depois ganharam o Brasil: as ideias de “patrimonialismo” e de “populismo”. Se o patrimonialismo torna invisível a base real do poder social, ao estigmatizar o Estado e seus ocupantes, sempre que as eleições ponham alguém não palatável pela elite da rapina econômica, o populismo estigmatiza qualquer pretensão popular.  |||  A noção de “populismo”, atrelada a qualquer política de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a importância da soberania popular como critério fundamental de qualquer sociedade democrática. Afinal, como os pobres, coitadinhos, não têm mesmo nenhuma consciência política, a soberania popular e sua validade podem ser sempre, em graus variados, posta em questão. O “voto inconsciente” corromperia a validade do princípio democrático por dentro. A proliferação dessa ideia na “esfera pública” a partir da sua “respeitabilidade científica” e depois pelo aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados, é impressionante. Os best-sellers da ciência política conservadora comprovam a eficácia dessa balela .  |||  As noções de patrimonialismo e de populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as ideias-guias que permitem a elite arregimentar a classe média como sua “tropa de choque” sempre que necessário. Elas, afinal, são as guardiãs da “distância social” em relação aos pobres, que é a pedra de toque da aliança antipopular construída no Brasil para preservar o privilégio, acesso aos capitais econômico e cultural, de 20% contra os 80 % de excluídos em alguma medida significativa. A suposta superioridade moral da classe média, dá a sua clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representar o melhor da sociedade. Não só a classe que “merece” o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia propiciada pela 'meritocracia'; mas, também, a classe que dispõe de algo que ninguém tem, nem os ricos: a certeza de sua “perfeição moral”.  |||  Isso não significa dizer que o moralismo não tenha eco também em outras classes. Em alguma medida, esse discurso nos toca a todos. Mas na classe média ele está em “casa”. Como a única corrupção que incomoda à classe média tradicional é apenas a corrupção reservada aos poderosos, que controlam o poder político e econômico, sua própria impotência social a preserva. Como, na imensa maioria dos casos, não se tem os meios de se envolver nas grandes negociatas que envolvem milhões, a classe média não é detentora sequer, na prática, do dilema moral de se deixar ou não corromper. Como justificação e legitimação da própria vida, o esquema moralista é, portanto, perfeito. Em relação aos poderosos, a classe média pode se ver sempre como “virgem imaculada” e moralmente perfeita.  |||  De outro modo, como explicar tamanho estreitamento da noção de 'moralidade', que faz com que deixe de ter qualquer relevância, por exemplo, a forma como se relaciona com os mais frágeis socialmente? Como alguém que explora as outras classes abaixo dela -  sob a forma de salário vil, de modo a poupar tempo nas tarefas domesticas, e que apoia a matança indiscriminada de pobres pela polícia, ou até a chacina de presos indefesos - consegue ter a pachorra de se acreditar moralmente elevado? Moralidade no ocidente significa, antes de tudo, respeito pelo outro, especialmente o 'outro' fragilizado por situações em relação às quais não responde por qualquer culpa. Daí que a indignação moral tão seletiva da classe média nativa, com a corrupção dos poderosos, seja pouco mais que a legitimação mesquinha de uma conduta cotidiana imoral sob qualquer aspecto relevante.  |||  O segundo ponto da justificação da classe média para baixo, em relação as classes populares, é o ponto mais interessante e que a transforma definitivamente na marionete perfeita da elite do dinheiro. A classe média brasileira possui um ódio e um desprezo cevados secularmente pelo “povo”. Essa é talvez nossa maior herança intocada da escravidão nunca verdadeiramente compreendida e criticada entre nós. Para que se possa odiar o pobre e o humilhado tem-se que construí-lo como culpado de sua própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e ameaçador.  |||  Se possível, deve-se humilhá-lo, enganá-lo, desumanizá-lo, maltratá-lo e matá-lo cotidianamente. Era isso que se fazia com o escravo e exatamente a mesma coisa que se faz com a “ralé de novos escravos” hoje em dia. Transformava-se o trabalho manual e produtivo em vergonha suprema como “coisa de preto” e depois se espantava que o negro não enfrentasse o trabalho produtivo com a mesma naturalidade que os imigrantes estrangeiros, para quem o trabalho era símbolo de 'dignidade'. Dificultava-se sistematicamente a formação da família escrava e nos espantamos com as famílias desestruturadas dos nosso excluídos de hoje, mera continuidade de um ativismo perverso para desumanizar os escravos de ontem e os atuais.  |||  Os escravos foram sistematicamente enganados, compravam a alforria nas minas, eram escravizados novamente e vendidos para outras regiões, brutalizados e  assassinados covardemente. A matança continua também agora com os novos escravos de todas as cores. O Brasil tem mais assassinatos – de pobres – que qualquer outro país do mundo. São 60 mil pobres mortos por ano no Brasil. Existe uma guerra de classes declarada e aberta. Construiu-se toda uma percepção negativa dos escravos e seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos, isso tudo sob forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas preconceituosas, e hoje muitos se comprazem em ver a profecia realizada.  |||  A concepção que um ser humano tem de si mesmo não depende de sua vontade e é formada pela forma como o indivíduo é percebido por seu meio social maior. Isso que significa dizer que somos produtos sociais. Tornamo-nos, em grande medida, aquilo que a sociedade vê em nós. O Brasil simplesmente não só abandonou os escravos e seus descendentes à miséria. Os brasileiros das classes superiores cevaram a miséria e a construíram ativamente. Edificou-se uma classe de humilhados para assim explorá-los por pouco e para construir uma distinção “meritocrática” covarde contra quem nunca teve igualdade de ponto de partida. Não se entende a miséria permanente e secular dos nossos excluídos sociais sem esse ativismo social e político covarde e perverso de nossas classes “superiores”.  |||  Em um contexto de 'democracia de massas', uma pessoa-um voto, a dominação covarde precisava ser repaginada e modernizada. A teoria do “populismo das massas” serve a esse propósito. Qualquer tentativa, mesmo tímida, como a que tivemos recentemente, de mitigar esse sofrimento e essa condenação secular, tem que ser estigmatizada e condenada no nascedouro. Se existe alguma política a seu favor, só pode ser para manipular seu voto supostamente inconsciente. Quando se diz que a Democracia entre nós sempre foi um mal-entendido, como afirmou Buarque, o motivo não é o 'patrimonialismo' que ele inventou. O mal-entendido é que classes sem valor não devem nem podem ter qualquer participação na política. Uma classe que “não sabe votar”, uma classe que nem deveria existir. Esta é a função da noção de 'populismo' entre nós: revestir de caráter científico o pior e o mais covarde dos preconceitos.  |||  O moralismo estreito “para inglês ver” e o ódio secular às classes populares parecem-me as mais brasileiras de todas as nossas singularidades sociais. Como os preconceitos são sociais e não individuais, como somos inclinados a pensar, todas as classes superiores no Brasil partilham desse preconceito. Ainda que, mais uma vez, ele esteja verdadeiramente “em casa” na classe média. Ainda que a classe média seja muito heterogênea, toda ela, sem exceção,  inclusive o autor que aqui escreve, é portadora,       em maior ou  menor    grau , desse tipo de preconceito. De alguma maneira “nascemos” com ele e o introjetamos e o incorporamos, de modo que, mesmo inconsciente e pré-reflexivo, seja refletido e consciente como ódio aberto.  |||  Mais uma vez, as ideias, os valores, os preconceitos são todos sociais e não existe nada de individual neles. Mesmo quem critica os preconceitos os tem dentro de si como qualquer outra pessoa criada no mesmo ambiente social. O que nos diferencia é a vigilância em relação a eles e a tentativa de criticá-los de modo refletido em alguns e não em outros. Mas todos nós somos suas vítimas. Afinal, eles nos são passados desde tenra idade, quando não temos defesas conscientes contra eles. E nos são transmitidos normalmente, não como discurso articulado, o que facilitaria sua crítica, mas por coisas como olhares, inflexão de voz, lapsos, expressões faciais etc. Tudo isso por parte de pessoas que amamos e que tendemos a imitar. As crianças decodificam o que esses sinais procuram dizer e assumem para si os preconceitos “naturalizando-os” como naturalizamos o ato de respirar, ou o fato de o sol nascer todos os dias.  |||  É desse modo que toda a classe média desenvolve uma mistura de medo e de raiva em relação aos pobres em geral. Com relação aos pobres que as servem, a relação pode se tornar eventualmente mais ambígua, especialmente nas frações mais críticas que tentam desenvolver mecanismos de compensação para sua “culpa de classe”. Mas a regra é o sadismo, mesmo nessas relações mais próximas, de modo muito semelhante ao tratamento dos escravos domésticos na escravidão. A continuidade é óbvia. Como nunca criticamos a escravidão, e como sempre, inclusive, tentamos torná-la invisível, como se  nunca tivesse existido, suas práticas continuadas com máscaras modernas também não são percebidas como continuidade.  |||  Mas se a maior parte da classe média é tendenciosamente conservadora, por ser criada nesse tipo de ambiente, não o é do mesmo modo em todos os segmentos. Ainda que toda a classe média se identifique com esse discurso, a intensidade varia significativamente dependendo da fração de classe considerada. Não há como falar da classe média como um todo indiferenciado e homogêneo. Mais ainda: o próprio reduto da crítica social mais acerbada também é composto e representado pela classe média com capital cultural mais crítico.  |||  Em estudo que ainda estamos realizando, combinando material empírico produzido no IPEA – em pesquisa que idealizei e coordenei pessoalmente , quando presidente desta entidade de pesquisa, acrescida de entrevistas realizadasi por conta própria em várias grandes cidades brasileiras – podemos, como hipótese de trabalho, diferenciar quatro nichos ou frações de classe na classe média. As questões centrais que permitiram essa reconstrução foram precisamente a noção de moralidade, mais ou menos abrangente e mais ou menos refletida, e a forma como se percebe as outras classes sociais. Essas duas questões ou variáveis nos dão uma ideia precisa da forma que os indivíduos entrevistados percebem se percebem e aos outros. Essas são as questões que nos dão acesso à moralidade específica de cada um e, portanto, ao que chamamos de visão de mundo política. A visão política de cada um, assim como das frações de classe a que pertencemos, é precisamente resultado da forma por meio da qual percebemos a nós mesmos e aos outros.  |||  O fator decisivo para a compreensão da heterogeneidade das visões políticas da classe média é o tipo de capital cultural diferencial que é apropriado seletivamente pelas respectivas frações, construído pelas socializações familiar e escolar distintas. Como vimos as classes sociais são construídas pela socialização familiar e escolar. É essa combinação, inclusive, que irá determinar sua “renda” mais tarde. São elas, portanto, que formam os indivíduos diferencialmente aparelhados para a competição social. A classe média é  por excelência a do capital cultural legítimo e valorizado. Aquele tipo de capital cultural que junta um tipo de conhecimento que capacita essa classe a função de capataz moderno da elite com formas de sociabilidade, também aprendidas na família e na escola, que possibilitam sua utilização como privilégio e distinção.  |||  A complexidade e heterogeneidade da classe média é que a junção de conhecimento valorizado com habilidades sociais específicas, além de certo capital econômico de partida, os três aspectos que as separam das classes populares possuem distinções importantes ainda que no mesmo segmento privilegiado da classe média. Nenhum desses aspectos que mencionamos é consciente ou refletido para as pessoas. Nós as utilizamos o tempo todo na vida como meio de auferir sucesso no dia a dia, sem obrigatoriamente saber conscientemente o que estamos fazendo.  |||  Isso tem a ver com uma peculiaridade importante do capital cultural: o fato de se confundir com a própria pessoa. O capital cultural, ao contrário do capital econômico, precisa ser “incorporado”, ou seja, tornado “corpo”, reflexo automático, para produzir os seus efeitos. Ele representa um conjunto de predisposições para a ação que assimilamos na família a na escola, que nos definem, em grande medida, enquanto indivíduos. Geralmente não temos distanciamento reflexivo em relação aquilo que o capital cultural  incorporado faz de nós, do mesmo modo que também não temos distanciamento reflexivo em relação àquilo que somos. Ao contrário, desenvolvemos um estilo de vida e um conjunto de justificações para proteger e legitimar aquilo que já somos.  |||  A atividade profissional que “escolhemos” já está, assim como o nível de “renda” que se terá mais tarde, em boa medida prefigurada pelo tipo de capital cultural que incorporamos. Os tipos de classe média que construimos refletem esse fato. Os quatro nichos ou frações de classe que reconstruímos a partir desse trabalho ainda em andamento se referem as frações que denominamos como respectivamente fração “protofascista”, a fração liberal, a fração expressivista, que costumo apelidar de “classe média de Oslo”, e a menor fração de todas, a fração crítica.  |||  Em termos quantitativos, a fração liberal é a maior, com cerca de 35% do total, vindo a seguir a fração “protofascista”, com cerca de 30%. Os 35% restantes compõem aquilo que poderíamos chamar de classe média com mais alto capital cultural, ou capital cultural reflexivo. No contexto dessas frações com mais alto capital cultural - composto por pessoas que, comparativamente, estudaram mais tempo, conhecem outras línguas, viajam e leem mais, consomem produtos culturais mais diferenciados e se inclinam a perceber a própria vida e a vida social  como invenção cultural e menos como “natureza” já dada - existe uma subdivisão importante.  |||  Cerca de 60% dessa classe média mais instruída, ou cerca de 20% do total de toda a classe média, formam aquilo que podemos chamar de fração “expressivista” da classe média. Vimos acima que o ocidente, na sua história, logra institucionalizar duas fontes de toda a moralidade possível: a noção de produtividade para o bem comum, aquilo que confere “dignidade” para qualquer indivíduo; e a noção de “personalidade sensível”, em parte criada contra o produtivismo, como forma de se inventar narrativamente um novo tipo de ser humano.  |||  A ideia aqui, ao ganhar as mentes e corações de todos em gradações diversas, é que aquilo que define o que há de mais “alto”, ou seja, a “virtude”, nos seres humanos não é apenas sua capacidade produtiva, mas a possibilidade de ser fiel aos seus sentimentos e emoções mais íntimos. Como esses sentimentos e emoções são, por definição, reprimidos e silenciados para o bem da disciplina e da capacidade produtiva, nós temos que “aprender a conhecê-los e expressá-los”.  |||  Já vimos também que o capitalismo aprendeu a lidar até com essa que foi a crítica mais radical em sua essência, tendo em vista que a crítica socialista também era produtivista. Foi o capitalismo financeiro que domou o conteúdo revolucionário do 'expressivismo' e transformou as bandeiras da contracultura em “estímulo à produção”. Desde então, a “criatividade” passa a ser solução ágil para os dilemas corporativos e a “sensibilidade” passa à condição de 'habilidade' de “gerir pessoas”.  |||  Mais importante ainda, pode agora ser “expressivista” sem qualquer crítica social que envolva a efetiva distribuição de riqueza e poder. 'Expressivismo' também, em país de maioria pobre como o nosso, passa a ser a preservação das matas e o respeito às minorias identitárias e a temas como sustentabilidade e responsabilidade social de empresas. O “charme” dessa posição é que ela tira onda de “emancipadora”, como na luta pelos direitos das minorias e pela preservação da natureza.  |||  Esses temas são, na verdade, fundamentais. O engano reside na reversão das hierarquias. Em um pais onde tantos levam uma vida miserável e indigna desse nome, a superação da miséria de tantos é a luta primeira e mais importante. As lutas pela preservação da natureza e das liberdades das minorias, importantes como elas são, devem ser acopladas a esse fio condutor que implica a superação de todas as injustiças. Não é assim que a fração 'expressivista' percebe o mundo. As lutas pelas minorias e pela natureza preservada são levadas a cabo, na realidade, “em substituição” a uma pauta mais abrangente que permitiria ligar essas lutas à luta geral contra todo tipo de opressão material ou simbólica.  |||  Tudo se dá como se esse pessoal “bem-intencionado” morasse em Oslo e tivesse apenas relações com seus amigos de Copenhague e Estocolmo,  acreditando, ao fim e ao cabo, morar na Escandinávia e não no Brasil. Para um sueco, que efetivamente resolveu os problemas centrais de injustiça social e distribuição de riquezas, não é estranho que se dedique à preservação de espécies raras e faça dessa luta sua atuação política principal. Que um brasileiro faça o mesmo e se esqueça da sorte de tantos seres humanos tão perto dele é apenas compreensível se ele os torna invisíveis. Por conta disso decidi chamar essa fração da classe média, que tira onda de moderna e emancipadora, de classe média de Oslo. Ela é fundamental para que possamos compreender o Brasil moderno como veremos.  |||  Os eleitores da candidata Marina Silva são exemplos clássicos desse tipo de classe média. Como a questão da divisão de riqueza e poder, o que realmente importa na sociedade está em segundo plano, o capitalismo financeiro está muito à vontade nesse esquema. Explorar mulher ou homem, branco ou negro, heterossexual ou homossexual, não apresenta qualquer diferença para o capital financeiro. Não à toa a candidata é apoiada por bancos conhecidos. A Rede Globo também nada de braçada nesse mundo do pseudocharme emancipador. Essa é a inteligência do novo capitalismo, que usa a linguagem da 'emancipação' para melhor oprimir e explorar.  |||  Na outra ponta desses 40% da classe média de maior capital cultural comparativo, temos a menor fração entre todas que é a denominada de 'crítica'. Ela perfaz nos nossos cálculos apenas 15% do total da classe média. O que faz com que a denominemos de 'crítica' ' não é nenhuma tomada de posição política particular, mas sim uma “atitude em relação ao mundo” singular. O mundo social é percebido como “construído” o que enseja também uma atitude mais ativa em relação a ele. Essa atitude básica se contrapõe a percepção do mundo como “dado”, como uma “natureza” sob outra forma, em relação à qual é preciso se adaptar. A forma de adaptação mais comum é se sentir pertencendo a correntes dominantes de opinião. A pequena fração crítica tem que navegar em mares turvos, já que em luta constante contra a corrente dominante. Ela mostra a dificuldade de se chegar a formas de liberdade pessoal e social e de autonomia real no contexto de uma sociedade perversa e repressiva. Por conta disso, ela também é prenhe de contradições como todas as outras frações.  |||  Quanto às frações dominantes, responsáveis pela ampla maioria de 2/3, a análise das entrevistas me levou a separá-las em “protofascista” e “liberal”. Essa é a classe média tradicional do “conhecimento técnico”, ou seja, daquele tipo de conhecimento que serve diretamente às necessidades do capital e sua reprodução, de menor contribuição para a transformação da própria personalidade. Essa, inclusive, a própria personalidade, não é vista como um processo de descoberta e criação. O distanciamento em relação a si mesmo, assim como o distanciamento reflexivo em relação à sociedade, exige pressupostos improváveis. Daí que sejam raros, mesmo na classe média privilegiada.  |||  Para que se perceba a vida como invenção é necessário saber conviver com a incerteza e a dúvida, duas das coisas que a personalidade tradicional e adaptativa mais odeia. A convivência com a dúvida é afetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. O maior desafio aqui não é simplesmente “cognitivo”, mas de natureza “emocional”. Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança das certezas compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da própria justeza e correção. Andar na corrente de opinião dominante com a maioria das outras pessoas confere a sensação de que o mundo social compartilhado é sua casa.  |||  Essas são as frações mais suscetíveis à imprensa e ao seu papel de articular e homogeneizar um discurso dominante para além das idiossincrasias individuais. O que a grande empresa de comunicação “vende” a seu público cativo é essa tranquilidade das certezas fáceis, o que torna o moralismo cínico da imprensa – que nunca tematiza seu próprio papel nos esquemas de corrupção – o arranjo de manipulação política perfeito para esses estratos sociais. É esse compartilhamento afetivo e emocional, já advindo da força da socialização familiar anterior, que faz com que essas pessoas procurem o tipo de capital cultural mais afirmativo da ordem social. Nele o “capataz da elite”, que ajuda a reproduzir na realidade cotidiana todos os privilégios que estão ganhando, está em casa.  |||  Se essas são as frações de classe média cujas cabeças são feitas pela mídia tradicional e dominante, o processo não é unilateral. A mídia não cria para eles uma interpretação do mundo do nada. Trata-se muito mais de uma dialética de interdependência, através de que a mídia aprende a se comunicar com sua classe de referência e seus consumidores mais leais, enquanto as frações tradicionais recebem da mídia o que precisam: um discurso homogêneo e totalizador que permita a defesa de suas opiniões,  generalizado e compartilhado o suficiente para lhes dar as “certezas” de que tanto precisam. O conforto aqui é aquele que legitima a vida tradicional e afirmativa do mundo. A tranquilidade de se estar no caminho certo, correção  que não é por definição uma descoberta pessoal e arriscada, mas sim aquela que se percebe correta porque se tem a companhia da maioria.  |||  Essas são também as frações do “moralismo”, ou seja, daquela noção de moralidade tão pouco arriscada e construtivista quanto sua forma de cognição do mundo. O que é “justo” e “moral” não é percebido como algo que se construa paulatinamente, à custa de experiências cotidianas desafiadoras, em um processo de aprendizado doloroso por meio do qual se reconhece, no melhor dos casos, nosso próprio envolvimento em tudo aquilo que criticamos da boca para fora. Esse tipo de aprendizado moral que exige o incondicional reconhecimento de que o mal nos habita a todos, e que só nos livramos dele apenas parcialmente e ainda assim sob o custo de uma vigilância eterna.  |||  O “moralismo” é muito diferente. Ele pula todas as etapas arriscadas e incertas e abraça só o produto fácil, vendido a baixo custo pela mídia e pela indústria cultural construída para satisfazer esse tipo de consumidor: a “boa consciência” das certezas compartilhadas. É nesse terreno que o “liberal” se afasta do “protofascista”. Para o liberal, os rituais da convivência democrática são constitutivos, ainda que possa ser convencido das necessidades de “exceções” no contexto democrático. Ele é tipicamente do tipo de 'classe média' que se sente enganado, hoje em dia, pela propaganda do golpe vendido como combate contra a corrupção. As “exceções” da ordem democrática não se reverteram em “mais democracia” como ele, pelo menos em nível consciente,  legitimava seu apoio ao golpe.  |||  O “protofascista”, que na verdade se espraia da classe média para setores significativos das classes populares, é bem diferente. O golpe lhe trouxe o mundo onde pode expressar legitimamente seu ódio e seu ressentimento. O ódio às classes populares é aqui aberto e dito com orgulho, como expressão de ousadia ou sinceridade. O “protofascista” se orgulha de não ser “falso” como os outros e poder dizer o que lhe vem à mente. O 'mal' e o 'bem' estão claramente definidos e  se confundem com a própria personalidade. Mais ainda: como nunca exercitou autocrítica, o “proto-fascista” tem uma sensibilidade à flor da pele e qualquer contraditório aciona uma reação potencialmente violenta. Assim, qualquer crítica é percebida como negação da personalidade como um todo, pela ausência de qualquer distanciamento em relação a si mesmo, gerando uma violência também totalizadora. Essa “banalidade do mal” não existia antes entre nós.  |||  É aqui que chegamos aos dias atuais. A “versão turbinada” do preconceito de classe entre nós se deu pela associação entre imprensa manipuladora, sob o comando da Rede Globo de televisão, além da operação “lava jato”, a maior farsa do Brasil moderno. Como foi possível transformar o preconceito cuidadosamente mantido com “fachada científica” na violência aberta dos dias de hoje? O conluio   Rede Globo - “Lava Jato” é a resposta. A Rede Globo articulou uma “soberania virtual e televisiva” como substituta da soberania popular, com apoio “político” da lava jato, levando a criminalização não só da política, mas, também, da própria ideia de igualdade social.  |||  O objetivo inicial do conluio entre Globo e Lava Jato foi a destruição do PT e dos movimentos populares que o apoiam. A Lava Jato forneceu concretude ao ataque à democracia pelos vazamentos seletivos ilegais até as eleições municipais de 2016, fazendo a população crer que apenas o PT havia cometido ilegalidades. Com essa fraude logrou dizimar o partido e fazer o PSDB renascer das cinzas nas eleições de 2016. Tudo em nome da verdade e da democracia. A mentira institucionalizada pelas corporações do Estado, que deveriam zelar por aquilo que estavam destruindo, só pouco tempo atrás veio à tona. O que está em jogo, portanto, não é apenas o ataque à democracia e ao princípio da soberania popular. Mas também ao próprio princípio da igualdade social, que é a bandeira máxima do PT.  |||  Depois que a noção de soberania pelo direito divino dos reis com sangue azul perdeu validade, o único princípio que justifica e legitima o poder no ocidente é a soberania popular consagrada pelo voto. Não existe saída ao tema da soberania popular como única forma legítima de exercício do poder político. A opção à soberania popular é a violência ditatorial. Não existe nada “no meio caminho” entre soberania popular e violência nua e crua, assim como não existe mulher mais ou menos grávida. Assim sendo, a Globo, no seu ataque a ideia de soberania popular, teve que se valer de uma fraude bem perpetrada: ao chamar seu público cativo às ruas, primeiro a fração “protofascista” e só depois, com os vazamentos seletivos apenas contra o PT, porções significativas das outras frações, a Globo fabricou a ilusão da “soberania virtual”.  |||  A “soberania virtual” coloniza o potencial legitimador da soberania popular ao dar a impressão que a “corrige em ato”, com o povo nas ruas sob a máscara de uma democracia direta comandada pela Rede Globo, corrigindo o que se fez nas urnas, supostamente sem “saber o que se estava fazendo”. Sem isso não se entende de onde a Globo e a grande imprensa a serviço da “elite do saque” retiraram legitimidade para realizar a lambança que fizeram no país, tirando onda de que estavam interessadas no “combate à corrupção”. Sem a fraude gigantesca da “soberania virtual” não se compreende o que se passou de 2013 a 2016, sob a batuta dessa “fábrica de mentiras” institucionalizada, hoje literalmente tão sem controle quanto as instituições e corporações do Estado que a Globo liderou nesse massivo ataque à jovem democracia brasileira.  |||  É claro que as empresas arriscam seu “capital de confiança” nesse jogo, acreditando que podem fazer seu público de imbecil o tempo todo. Um cálculo arriscado, se levarmos em conta a ausência de padrão de comparação do público brasileiro, acostumado a ser usado como massa de manobra sem nunca ter tido acesso a uma mídia plural. A distorção sistemática da realidade nos últimos anos superou qualquer coisa que tenhamos testemunhado antes. A possibilidade de se perceber que as próprias empresas de comunicação fazem parte do jogo da elite do atraso, na manutenção dos privilégios de meia dúzia em desfavor da população como um todo, torna-se hoje, mais que nunca, um risco real.  |||  Repare o leitor que jamais se reflete acerca de um sistema político construído para ser corrupto, ou seja, construído para ser comprado pela elite do atraso, a fim de manter seus privilégios econômicos. O ataque midiático é feito para parecer que a corrupção é obra de pessoas privadas ou partidos específicos. Isso acontece, mesmo que esse tipo de manobra manipulativa, como vemos  em meados de 2017, não tenha como se manter no decorrer do tempo, agora que o PSDB, o partido da elite financeira, esteja no centro dos escândalos. Mas entre 2013 e 2016 apenas o PT foi criminalizado e viu sua representação ser dizimada pelos “vazamentos seletivos” comandados pela mídia e pelos aliados no aparelho do Estado.  |||  O crescente apoio popular à ditadura, assim como as formas não democráticas de sociabilidade e de ódio aberto que se instauraram no Brasil deste então, tem nessa fraude midiática gigantesca seu início. É que o ataque não se limitou à democracia. A Globo como que concentra o ódio secular e escravocrata ao povo e passa a expressar o pacto elitista e antipopular em ato. A perseguição seletiva e sem tréguas ao PT e aos movimentos sociais que o apoiam equivalem a um ataque ao princípio da “igualdade social” como valor fundamental das democracias ocidentais. É que a luta contra a desigualdade do PT e de Lula foram tornados, pela propaganda televisiva, em mero instrumento para a corrupção no Estado.  |||  Como o PT foi o motor recente da ascensão social dos miseráveis e pobres em geral, atacá-lo como corrupto e como “organização criminosa” – sendo acompanhada pelos próprios agentes do Estado envolvidos na operação Lava Jato nesse ataque inescrupuloso – equivale a tornar suspeita a própria demanda por igualdade. É a igualdade que é tornada “meio para um fim”, no caso a suposta corrupção, o que implica retirar sua validade como “valor”, ou seja, como um fim em si. A GLOBO e a grande mídia – e sua aliada a operação Lava Jato – não só contribuíram para o mais massivo ataque à democracia e ao Direito brasileiro de que se tem notícia, mas atacam também, em uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta, a igualdade social como princípio ao torná-lo suspeito e mero instrumento para outros fins.  |||  Depois, quando o ódio passa a grassar no país e figuras que representam o elogio à tortura e a violência mais grotesca, como Jair Bolsonaro e seu fascismo aberto, passam a representar ameaças reais à democracia e aos direitos humanos mais elementares, a Globo e a grande mídia tira onda de quem não tem nada com isso. Esconde o fascismo que pratica diariamente e critica o resultado que produz sem assumir a menor responsabilidade pelo que faz. A Globo e a operação Lava Jato, no entanto, são os agentes principais dessa verdadeira “regressão civilizacional” que sacode o pais deixado em frangalhos, econômica, política e moralmente, pela ação combinada desses agentes. Para sua audiência imbecilizada, no entanto, como a globo critica Bolsonaro da boca para fora, sua ação a favor dos valores antidemocráticos que é o que, na realidade, cria o campo de ação para os “Bolsonaros da vida”, passa despercebida.  |||  A Globo e a grande mídia colonizam para fins de negócios, escusos ou não, toda a capacidade de reflexão de um povo, ao impossibilitar o próprio aprendizado democrático que exige opiniões alternativas e conflitantes, coisa que nunca ninguém viu acontecer em época alguma em nenhum de seus programas. Isso equivale a imbecilizar uma nação que certamente não nasceu imbecil, mas foi tornada imbecil para os fins comerciais de uma única família que representa e expressa o pior de nossa elite do saque e da rapina.  |||  O que se perde aqui é simplesmente o recurso mais valioso de uma sociedade que é sua capacidade de aprender e refletir com base em informações isentas. Distorcer sistematicamente a realidade social e mentir e fraudar uma população indefesa é, por conta disso, fazer um mal incomparavelmente maior que surrupiar qualquer quantia financeira. É que o mal aqui produzido é literalmente impagável. O que se frustra aqui são os sonhos, os aprendizados coletivos e as esperanças de centenas de milhões. O que se impede aqui é o processo histórico de aprendizado possível de todo um povo, abortado por uma empresa que age como um partido político inescrupuloso. Isso apenas para que fique registrada a noção de mal maior em uma sociedade que tende a perder qualquer critério de aferição e de comparação de grandezas morais.  |||  Com o cidadão feito de completo imbecil, é fácil convencê-lo de que a Petrobras, como antro da “corrupção dos tolos”, só dos políticos, tem que ser vendida aos estrangeiros 'honestos' e 'incorruptíveis' que nossa inteligência “vira lata” criou e nossa mídia repete em pílulas todos os dias. Com base na “corrupção dos tolos” se cria, na sociedade imbecilizada por uma mídia venal que distorce a realidade para vendê-la com maior lucro próprio, as pré-condições para a “corrupção real”, a venda do país e de suas riquezas, a preço vil.  |||  O fundamento da confusão entre “corrupção real” e “corrupção dos tolos” é uma leitura enviesada e interessada da sociedade brasileira que, no entanto, logrou confundir e enganar tanto a direita quanto a esquerda. É necessário se aprender com a nossa catástrofe que é recorrente. As falsas ideias existem para fazer as pessoas de idiotas, posto que apenas elas dão de bom grado e volitivamente o produto de seu esforço e trabalho diário a quem os engana e oprime. Sem uma crítica das ideias não existe prática social verdadeiramente nova. A ideia central que nos faz de tolos é a de que nossa história e a história de nossas mazelas tem sua raiz no patrimonialismo só do Estado. Foi por conta dela que Rede Globo e Lava Jato legitimaram seu ataque combinado a economia e a sociedade brasileira. É a pseudo explicação patrimonialista, que está no lugar da explicação pela escravidão e por sua herança de ódio, espoliação e humilhação dos mais frágeis.    
(*) JESSÉ SOUZA graduou-se em Direito pela Universidade de Brasília (1981), onde concluiu o mestrado em Sociologia, em 1986. Doutorou-se(1986) em Sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg (Alemanha), país onde obteve livre docência nessa mesma disciplina(na Universität Flensburg) em 2006. Também fez pós-doutorado em Sociologia na New School for Social Research, Nova Iorque(1994/1995).  Escreveu e organizou 22 livros, em português, inglês e alemão sobre Sociologia Política, Teoria da modernização periférica e desigualdade no Brasil contemporâneo. É professor titular de ciência política na Universidade Federal Fluminense, em Niterói,(RJ). Em 2 de abril de 2015 foi nomeado para a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),  mas demitido em 2016, logo após o golpista Michel Temer apropriar-se da presidência da República.


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