O papel da Globo e da
classe média no golpe de 2016 e no retrocesso que atinge o país

A CLASSE MÉDIA COMO CAPATAZ DA ELITE
Este artigo é o resumo parcial de um
fio condutor que percorre meu último livro lançado em setembro último, pela
editora Leya, com o título “A Elite do Atraso: da escravidão à lava jato”.
Nesse livro, busco enfrentar o desafio ambicioso de formular uma gênese
histórica alternativa à narrativa hoje dominante, seja na direita ou na
esquerda, do espectro político na sociedade brasileira contemporânea. Embora no
livro reconstrua a escravidão e seus efeitos desde o Brasil-Colônia, aqui a
limitação de espaço me obriga a inquirir acerca de sua feição mais moderna.
Como se constrói, no século XX, uma sociedade que reproduz todas as iniquidades
do ódio, humilhação e desprezo contra os mais frágeis que caracterizam a
escravidão? ||| Minha tese é que isso foi realizado como
programa político conduzido conscientemente pela elite econômica, em primeiro
lugar a elite paulistana, como forma de assegurar para si a condução ideológica
da sociedade e limitar a ação política dos setores populares, mesmo em um
contexto de sufrágio universal. A astúcia da elite foi perceber, já no início
do século XX, quando uma classe média começa a despontar de modo incipiente nas
grandes cidades brasileiras, que se os pobres poderiam ser oprimidos pelo
cassetete e pelo fuzil dos policiais, a classe média exigia uma estratégia
alternativa. Ao contrário da violência material, aplicada indiscriminadamente
contra os pobres, a violência contra a classe média teria que ser “simbólica”
para produzir cooptação e “convencimento”. ||| A perda do poder político para Getúlio
Vargas vai ser o ponto de inflexão dessa estratégia. Tendo perdido o poder
político, a elite econômica paulistana vai se utilizar de seu “poder
material” para construir as bases do seu “poder simbólico”. A ideia guia foi a
percepção da necessidade de se construir uma hegemonia ideológica como forma
tanto de reconquista do poder político como para limitar o poder dos eventuais
inimigos de classe alçados ao controle do Estado. ||| A classe média não é necessariamente conservadora. Também não é homogênea. O “movimento
tenentista”, conhecido como o primeiro movimento político comandado pelos
“setores médios” no Brasil, revela bem essas características. Ainda que tenha
sido protagonizado por oficiais militares de baixa e média patente (daí o nome tenentismo) a partir dos anos 20 do século passado, esse movimento já refletia a nova sociedade mais urbana e moderna que se criava. A parte rebelde da
instituição militar era uma expressão desses novos anseios. ||| A oposição ao pacto conservador da
“república velha”, com suas eleições fraudadas e restritas, era o ponto de união
entre os tenentistas. Dentro do movimento, no entanto, conviviam desde as
demandas liberais por voto secreto e por maior liberdade de imprensa, até o
desejo de um Estado forte como meio de se contrapor ao mandonismo rural. Parte
do grupo se radicalizou politicamente na “coluna Prestes”, cujo líder, Luís Carlos
Prestes, ingressaria décadas depois ao PCB-Partido Comunista do Brasil(fundado em 1922). Parte do grupo se
alinhou desde a(chamada) Revolução de Trinta com Getúlio Vargas enquanto outra parte
ainda lhe exerceu ferrenha oposição todo o tempo. O nosso primeiro movimento
político com claro suporte e apoio da classe média mostrava a extraordinária
multiplicidade de posições políticas que essa classe pode abrigar. ||| Quando Sérgio Buarque de Holanda elegeu o
“patrimonialismo” das elites que habitam o Estado como o grande problema
nacional, não estava dando vida, portanto, a qualquer sentimento novo. A
corrupção do Estado era uma das bandeiras centrais do tenentismo. A falta de
“homogeneidade de pensamento” dos tenentes, sua confusão em relação à
hierarquia das questões principais, refletia uma carência real. Poder-se-ia,
por exemplo, perceber a corrupção do Estado como efeito de sua captura pela
própria elite econômica que o usa para defender e aprofundar seus privilégios.
Isso teria levado a uma conscientização coletiva dos desmandos de uma elite
apenas interessada na perpetuação de seus privilégios. ||| Não foi essa a interpretação que
prevaleceu. A elite do dinheiro paulista, que havia perdido o poder político, ainda que mantido o poder econômico, agiu de modo astucioso, calculado e
planejado. Percebeu claramente os sinais do novo tempo. A truculência do “voto
de cabresto” estava com os dias contados. Ao invés da “violência física”
deveria entrar no seu lugar a “violência simbólica” como meio de garantir a
sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios. Com o Estado
na mão dos 'inimigos', a elite do dinheiro paulistana descobre a “esfera pública”
como arma. Se não controla mais a sociedade com a farsa eleitoral
acompanhada da truculência e da violência física, a nova forma de controle
oligárquico tem que assumir novas vestes para se preservar. O domínio da
“opinião pública” parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos.
O que estava em jogo era a captura agora intelectual e simbólica da classe
média letrada pela elite do dinheiro formando a “aliança de classe dominante”
que marcaria o Brasil daí em diante. ||| Como se construiu esse projeto no alvorecer
do século XX? A USP/Universidade do Estado de São Paulo foi criada por essa
mesma elite desbancada do poder político, e pensada como a base simbólica, uma
espécie de 'laboratório de ideias' gigantesco do liberalismo brasileiro desse projeto urdido para contrapor a força das ideias generalizadas na
sociedade ao poder estatal, desde que esse fosse ocupado pelo inimigo
político à época representado por Getúlio Vargas. Sérgio Buarque é menos o
criador e mais o sistematizador convincente do moralismo “vira lata” que
irá valer, a partir de então, como versão oficial pseudocrítica do país acerca
de si mesmo. Como o “Estado corrupto” passa a ser identificado como o mal maior
da nação, a elite do dinheiro ganha uma espécie de “carta na manga” que pode
ser usada a partir de então, sempre que a “soberania popular” ponha,
inadvertidamente, alguém contrário aos interesses do poder econômico. ||| A partir desse eixo intelectual eivado
de prestígio, essa concepção se torna dominante no país inteiro. Desde essa
época, o liberalismo conservador, baseado no falso moralismo da “higiene
moral” da nação, será a pedra de toque da arregimentação da classe média criada nessa quadra histórica pela elite do dinheiro. O discurso moralista já
havia mostrado todo seu potencial de arregimentar e convencer sua clientela já
na década de 1920 do século passado com o movimento tenentista. Os “tenentes”,
oficiais das forças armadas mais jovens, de baixa e média patente, pretendiam
a “renovação moral” da nação de cima para baixo. O Estado Novo de Getúlio foi
um locus privilegiado para vários deles, ainda que disputas intestinas tenham
levado vários a trocar de lado com o tempo. O tenentismo havia mostrado a
eficácia desse novo discurso típico da classe média. ||| As classes sociais estão sempre
disputando não apenas bens materiais e salários, mas, também, prestígio e
reconhecimento, ou, em uma palavra, legitimação, do próprio comportamento e da
própria vida. As classes superiores, que monopolizam capital econômico e cultural,
têm que justificar, portanto, seus privilégios. O capital econômico se legitima
com o “empreendedorismo”, de quem “dá emprego” e ergue impérios, e com o
suposto bom gosto inato de seu estilo de vida, como se a posse do dinheiro
fosse mero detalhe sem importância. ||| A legitimação dos privilégios da classe
média é distinta. Como seu privilégio é invisível pela reprodução da
socialização familiar que esconde o trabalho prévio de “formar vencedores”, a
classe média é, por excelência, a classe da da meritocracia e da superioridade
moral. Eles servem tanto para distingui-la e para justificar seus privilégios
em relação aos pobres como também aos ricos. Se os pobres são
desprezados, os ricos são invejados. Existe uma ambiguidade nesse sentimento, em
relação aos ricos, que vincula admiração e ressentimento. A suposta
superioridade moral da classe média, dá a sua clientela tudo aquilo que ela
mais deseja: o sentimento de representar o 'melhor' da sociedade. Não só a
classe que “merece” o que tem por esforço próprio, conforto que a falsa ideia
da meritocracia propicia; mas, também, a classe que tem algo que ninguém tem,
nem os ricos, que é a certeza de sua “perfeição moral”. ||| É claro que a “perfeição moral” pode
muito bem tomar o caminho que enseje uma abertura ao tema da responsabilidade
social com os estratos mais frágeis, como aconteceu em muitos
países europeus. Um caminho, aliás, já aberto pelo Cristianismo, “secularizado”
em proposições políticas. Que entre nós a “perfeição moral” tenha tomado a forma
estreita de reação à corrupção apenas no Estado – e aí apenas quando ocupado
por líderes populares – é reflexo da bem perpetrada manipulação intelectual e
política destinada a tornar a classe média massa de manobra dos endinheirados. ||| A elite do dinheiro soube muito bem
aproveitar as necessidades de de autojustificação dos setores
médios. “Comprou” uma inteligência para formular uma “teoria liberal moralista” feita com precisão de alfaiate para as necessidades do público que queria
arregimentar e controlar. Esse tipo de “compra” da elite intelectual pela elite
do dinheiro não se dá apenas nem principalmente com dinheiro. São os
“mecanismos de consagração” de um autor e de uma ideia seguindo, aparentemente,
todas as regras específicas do campo científico. Mas a quem pertencem os
jornais, as editoras e os bancos e empresas que financiam os prêmios
científicos? Desse modo, sem parecer “compra”, o expediente é muito mais
bem sucedido. Depois, usou sua posição de proprietária dos meios de produção
material para se apropriar dos 'meios simbólicos' de produção e reprodução da
sociedade. É aqui que entra o contexto existente até hoje entre imprensa,
universidade, editoras e capital econômico. ||| Como o dinheiro não pode aparecer
comprando diretamente os valores que guiam as esferas da cultura, do
conhecimento e da informação, essas esferas precisam construir “mecanismos de
consagração” internos como se fossem infensos à autoridade do dinheiro e
do poder. Isso explica em grande parte que tanto a direita quanto a esquerda
tenha se deixado colonizar por esse tipo de prática e de discurso. ||| Todo o discurso elitista e conservador
do liberalismo brasileiro está contido em duas noções que foram desenvolvidas
na USP – a universidade criada pela elite ante estatal paulistana – e que
depois ganharam o Brasil: as ideias de “patrimonialismo” e de “populismo”. Se o
patrimonialismo torna invisível a base real do poder social, ao estigmatizar o
Estado e seus ocupantes, sempre que as eleições ponham alguém não palatável
pela elite da rapina econômica, o populismo estigmatiza qualquer pretensão
popular. ||| A noção de “populismo”, atrelada a
qualquer política de interesse dos mais pobres, serve para mitigar a
importância da soberania popular como critério fundamental de qualquer
sociedade democrática. Afinal, como os pobres, coitadinhos, não têm mesmo
nenhuma consciência política, a soberania popular e sua validade podem ser
sempre, em graus variados, posta em questão. O “voto inconsciente” corromperia
a validade do princípio democrático por dentro. A proliferação dessa ideia na
“esfera pública” a partir da sua “respeitabilidade científica” e depois pelo
aparato legitimador midiático, que o repercute todos os dias de modos variados,
é impressionante. Os best-sellers da ciência política conservadora comprovam a
eficácia dessa balela . ||| As noções de patrimonialismo e de
populismo, distribuídas em pílulas pelo veneno midiático diariamente, são as
ideias-guias que permitem a elite arregimentar a classe média como sua “tropa de
choque” sempre que necessário. Elas, afinal, são as guardiãs da “distância
social” em relação aos pobres, que é a pedra de toque da aliança antipopular construída no Brasil para preservar o privilégio, acesso aos capitais
econômico e cultural, de 20% contra os 80 % de excluídos em alguma medida
significativa. A suposta superioridade moral da classe média, dá a sua
clientela tudo aquilo que ela mais deseja: o sentimento de representar o
melhor da sociedade. Não só a classe que “merece” o que tem por esforço
próprio, conforto que a falsa ideia propiciada pela 'meritocracia'; mas, também, a
classe que dispõe de algo que ninguém tem, nem os ricos: a certeza de sua
“perfeição moral”. ||| Isso não significa dizer que o
moralismo não tenha eco também em outras classes. Em alguma medida, esse
discurso nos toca a todos. Mas na classe média ele está em “casa”. Como a única
corrupção que incomoda à classe média tradicional é apenas a corrupção
reservada aos poderosos, que controlam o poder político e econômico, sua
própria impotência social a preserva. Como, na imensa maioria dos casos, não
se tem os meios de se envolver nas grandes negociatas que envolvem milhões, a
classe média não é detentora sequer, na prática, do dilema moral de se deixar ou não
corromper. Como justificação e legitimação da própria vida, o esquema moralista
é, portanto, perfeito. Em relação aos poderosos, a classe média pode se ver
sempre como “virgem imaculada” e moralmente perfeita. ||| De outro modo, como explicar tamanho
estreitamento da noção de 'moralidade', que faz com que deixe de ter qualquer
relevância, por exemplo, a forma como se relaciona com os mais frágeis
socialmente? Como alguém que explora as outras classes abaixo dela - sob a forma
de salário vil, de modo a poupar tempo nas tarefas domesticas, e que apoia a
matança indiscriminada de pobres pela polícia, ou até a chacina de presos
indefesos - consegue ter a pachorra de se acreditar moralmente elevado?
Moralidade no ocidente significa, antes de tudo, respeito pelo outro, especialmente
o 'outro' fragilizado por situações em relação às quais não responde por qualquer culpa.
Daí que a indignação moral tão seletiva da classe média nativa, com a
corrupção dos poderosos, seja pouco mais que a legitimação mesquinha de uma
conduta cotidiana imoral sob qualquer aspecto relevante. ||| O segundo ponto da justificação da
classe média para baixo, em relação as classes populares, é o ponto mais
interessante e que a transforma definitivamente na marionete perfeita da elite
do dinheiro. A classe média brasileira possui um ódio e um desprezo cevados
secularmente pelo “povo”. Essa é talvez nossa maior herança intocada da
escravidão nunca verdadeiramente compreendida e criticada entre nós. Para que
se possa odiar o pobre e o humilhado tem-se que construí-lo como culpado de sua
própria (falta de) sorte e ainda torná-lo perigoso e ameaçador. ||| Se possível, deve-se humilhá-lo,
enganá-lo, desumanizá-lo, maltratá-lo e matá-lo cotidianamente. Era isso que se
fazia com o escravo e exatamente a mesma coisa que se faz com a “ralé de novos
escravos” hoje em dia. Transformava-se o trabalho manual e produtivo em
vergonha suprema como “coisa de preto” e depois se espantava que o negro não
enfrentasse o trabalho produtivo com a mesma naturalidade que os imigrantes
estrangeiros, para quem o trabalho era símbolo de 'dignidade'. Dificultava-se sistematicamente a formação da família escrava e nos espantamos com as famílias
desestruturadas dos nosso excluídos de hoje, mera continuidade de um ativismo
perverso para desumanizar os escravos de ontem e os atuais. ||| Os escravos foram sistematicamente
enganados, compravam a alforria nas minas, eram escravizados novamente e
vendidos para outras regiões, brutalizados e assassinados covardemente. A
matança continua também agora com os novos escravos de todas as cores. O Brasil
tem mais assassinatos – de pobres – que qualquer outro país do mundo. São 60
mil pobres mortos por ano no Brasil. Existe uma guerra de classes declarada e aberta. Construiu-se toda uma percepção negativa dos escravos e seus descendentes como feios, fedorentos, incapazes, perigosos e preguiçosos,
isso tudo sob forma irônica, povoando o cotidiano com ditos e piadas
preconceituosas, e hoje muitos se comprazem em ver a profecia realizada. ||| A concepção que um ser humano tem de si
mesmo não depende de sua vontade e é formada pela forma como o indivíduo é
percebido por seu meio social maior. Isso que significa dizer que somos
produtos sociais. Tornamo-nos, em grande medida, aquilo que a sociedade vê em
nós. O Brasil simplesmente não só abandonou os escravos e seus descendentes à
miséria. Os brasileiros das classes superiores cevaram a miséria e a
construíram ativamente. Edificou-se uma classe de humilhados para assim
explorá-los por pouco e para construir uma distinção “meritocrática” covarde
contra quem nunca teve igualdade de ponto de partida. Não se entende a miséria
permanente e secular dos nossos excluídos sociais sem esse ativismo social e
político covarde e perverso de nossas classes “superiores”. ||| Em um contexto de 'democracia de massas',
uma pessoa-um voto, a dominação covarde precisava ser repaginada e modernizada.
A teoria do “populismo das massas” serve a esse propósito. Qualquer tentativa,
mesmo tímida, como a que tivemos recentemente, de mitigar esse sofrimento e
essa condenação secular, tem que ser estigmatizada e condenada no nascedouro.
Se existe alguma política a seu favor, só pode ser para manipular seu voto
supostamente inconsciente. Quando se diz que a Democracia entre nós sempre foi
um mal-entendido, como afirmou Buarque, o motivo não é o 'patrimonialismo' que
ele inventou. O mal-entendido é que classes sem valor não devem nem podem ter
qualquer participação na política. Uma classe que “não sabe votar”, uma classe
que nem deveria existir. Esta é a função da noção de 'populismo' entre nós:
revestir de caráter científico o pior e o mais covarde dos preconceitos. ||| O moralismo estreito “para inglês ver”
e o ódio secular às classes populares parecem-me as mais brasileiras de todas as
nossas singularidades sociais. Como os preconceitos são sociais e não
individuais, como somos inclinados a pensar, todas as classes superiores no
Brasil partilham desse preconceito. Ainda que, mais uma vez, ele esteja
verdadeiramente “em casa” na classe média. Ainda que a classe média seja muito
heterogênea, toda ela, sem exceção, inclusive o autor que aqui escreve, é
portadora, em maior ou menor grau , desse tipo de preconceito. De alguma maneira
“nascemos” com ele e o introjetamos e o incorporamos, de modo que, mesmo inconsciente
e pré-reflexivo, seja refletido e consciente como ódio aberto. ||| Mais uma vez, as ideias, os valores, os
preconceitos são todos sociais e não existe nada de individual neles. Mesmo
quem critica os preconceitos os tem dentro de si como qualquer outra pessoa
criada no mesmo ambiente social. O que nos diferencia é a vigilância em relação
a eles e a tentativa de criticá-los de modo refletido em alguns e não em
outros. Mas todos nós somos suas vítimas. Afinal, eles nos são passados desde
tenra idade, quando não temos defesas conscientes contra eles. E nos são
transmitidos normalmente, não como discurso articulado, o que facilitaria sua
crítica, mas por coisas como olhares, inflexão de voz, lapsos, expressões
faciais etc. Tudo isso por parte de pessoas que amamos e que tendemos a
imitar. As crianças decodificam o que esses sinais procuram dizer e assumem para
si os preconceitos “naturalizando-os” como naturalizamos o ato de respirar, ou
o fato de o sol nascer todos os dias. ||| É desse modo que toda a classe média
desenvolve uma mistura de medo e de raiva em relação aos pobres em geral. Com
relação aos pobres que as servem, a relação pode se tornar eventualmente mais
ambígua, especialmente nas frações mais críticas que tentam desenvolver
mecanismos de compensação para sua “culpa de classe”. Mas a regra é o sadismo, mesmo nessas relações mais próximas, de modo muito semelhante ao tratamento dos
escravos domésticos na escravidão. A continuidade é óbvia. Como nunca
criticamos a escravidão, e como sempre, inclusive, tentamos torná-la invisível, como se nunca tivesse existido, suas práticas continuadas com máscaras modernas
também não são percebidas como continuidade. ||| Mas se a maior parte da classe média é
tendenciosamente conservadora, por ser criada nesse tipo de ambiente, não o
é do mesmo modo em todos os segmentos. Ainda que toda a classe média se
identifique com esse discurso, a intensidade varia significativamente
dependendo da fração de classe considerada. Não há como falar da classe média
como um todo indiferenciado e homogêneo. Mais ainda: o próprio reduto da
crítica social mais acerbada também é composto e representado pela classe média
com capital cultural mais crítico. ||| Em estudo que ainda estamos realizando,
combinando material empírico produzido no IPEA – em pesquisa que idealizei e
coordenei pessoalmente , quando presidente desta entidade de pesquisa, acrescida
de entrevistas realizadasi por conta própria em várias grandes cidades
brasileiras – podemos, como hipótese de trabalho, diferenciar quatro nichos ou
frações de classe na classe média. As questões centrais que permitiram essa
reconstrução foram precisamente a noção de moralidade, mais ou menos abrangente
e mais ou menos refletida, e a forma como se percebe as outras classes sociais.
Essas duas questões ou variáveis nos dão uma ideia precisa da forma que os
indivíduos entrevistados percebem se percebem e aos outros. Essas são as
questões que nos dão acesso à moralidade específica de cada um e, portanto, ao
que chamamos de visão de mundo política. A visão política de cada um, assim
como das frações de classe a que pertencemos, é precisamente resultado da forma
por meio da qual percebemos a nós mesmos e aos outros. ||| O fator decisivo para a compreensão da
heterogeneidade das visões políticas da classe média é o tipo de capital
cultural diferencial que é apropriado seletivamente pelas respectivas frações,
construído pelas socializações familiar e escolar distintas. Como vimos as
classes sociais são construídas pela socialização familiar e escolar. É essa
combinação, inclusive, que irá determinar sua “renda” mais tarde. São elas,
portanto, que formam os indivíduos diferencialmente aparelhados para a
competição social. A classe média é por excelência a do capital cultural
legítimo e valorizado. Aquele tipo de capital cultural que junta um tipo de
conhecimento que capacita essa classe a função de capataz moderno da elite com
formas de sociabilidade, também aprendidas na família e na escola, que
possibilitam sua utilização como privilégio e distinção. ||| A complexidade e heterogeneidade da
classe média é que a junção de conhecimento valorizado com habilidades sociais
específicas, além de certo capital econômico de partida, os três aspectos que
as separam das classes populares possuem distinções importantes ainda que no
mesmo segmento privilegiado da classe média. Nenhum desses aspectos que
mencionamos é consciente ou refletido para as pessoas. Nós as utilizamos o
tempo todo na vida como meio de auferir sucesso no dia a dia, sem
obrigatoriamente saber conscientemente o que estamos fazendo. ||| Isso tem a ver com uma peculiaridade
importante do capital cultural: o fato de se confundir com a própria
pessoa. O capital cultural, ao contrário do capital econômico, precisa ser
“incorporado”, ou seja, tornado “corpo”, reflexo automático, para produzir os
seus efeitos. Ele representa um conjunto de predisposições para a ação que
assimilamos na família a na escola, que nos definem, em grande medida, enquanto
indivíduos. Geralmente não temos distanciamento reflexivo em relação aquilo que
o capital cultural incorporado faz de nós, do mesmo modo que também não
temos distanciamento reflexivo em relação àquilo que somos. Ao contrário,
desenvolvemos um estilo de vida e um conjunto de justificações para proteger e
legitimar aquilo que já somos. ||| A atividade profissional que
“escolhemos” já está, assim como o nível de “renda” que se terá mais tarde, em
boa medida prefigurada pelo tipo de capital cultural que incorporamos. Os
tipos de classe média que construimos refletem esse fato. Os quatro nichos ou
frações de classe que reconstruímos a partir desse trabalho ainda em andamento
se referem as frações que denominamos como respectivamente fração
“protofascista”, a fração liberal, a fração expressivista, que costumo
apelidar de “classe média de Oslo”, e a menor fração de todas, a fração
crítica. ||| Em termos quantitativos, a fração
liberal é a maior, com cerca de 35% do total, vindo a seguir a fração
“protofascista”, com cerca de 30%. Os 35% restantes compõem aquilo que
poderíamos chamar de classe média com mais alto capital cultural, ou capital
cultural reflexivo. No contexto dessas frações com mais alto capital cultural - composto por pessoas que, comparativamente, estudaram mais tempo, conhecem
outras línguas, viajam e leem mais, consomem produtos culturais mais
diferenciados e se inclinam a perceber a própria vida e a vida social como
invenção cultural e menos como “natureza” já dada - existe uma subdivisão
importante. ||| Cerca de 60% dessa classe média mais
instruída, ou cerca de 20% do total de toda a classe média, formam aquilo que
podemos chamar de fração “expressivista” da classe média. Vimos acima que o
ocidente, na sua história, logra institucionalizar duas fontes de toda a
moralidade possível: a noção de produtividade para o bem comum, aquilo que
confere “dignidade” para qualquer indivíduo; e a noção de “personalidade sensível”,
em parte criada contra o produtivismo, como forma de se inventar narrativamente
um novo tipo de ser humano. ||| A ideia aqui, ao ganhar as mentes e
corações de todos em gradações diversas, é que aquilo que define o que há de
mais “alto”, ou seja, a “virtude”, nos seres humanos não é apenas sua
capacidade produtiva, mas a possibilidade de ser fiel aos seus sentimentos e
emoções mais íntimos. Como esses sentimentos e emoções são, por definição,
reprimidos e silenciados para o bem da disciplina e da capacidade produtiva,
nós temos que “aprender a conhecê-los e expressá-los”. ||| Já vimos também que o capitalismo
aprendeu a lidar até com essa que foi a crítica mais radical em sua essência, tendo em vista que a crítica socialista também era produtivista. Foi o capitalismo
financeiro que domou o conteúdo revolucionário do 'expressivismo' e transformou
as bandeiras da contracultura em “estímulo à produção”. Desde então, a “criatividade” passa a ser solução ágil para os dilemas corporativos e a “sensibilidade” passa à condição de 'habilidade' de “gerir pessoas”. ||| Mais importante ainda, pode agora
ser “expressivista” sem qualquer crítica social que envolva a efetiva
distribuição de riqueza e poder. 'Expressivismo' também, em país de maioria
pobre como o nosso, passa a ser a preservação das matas e o respeito às
minorias identitárias e a temas como sustentabilidade e responsabilidade social
de empresas. O “charme” dessa posição é que ela tira onda de “emancipadora”,
como na luta pelos direitos das minorias e pela preservação da natureza. ||| Esses temas são, na verdade, fundamentais. O engano reside na reversão das hierarquias. Em um pais onde
tantos levam uma vida miserável e indigna desse nome, a superação da miséria de
tantos é a luta primeira e mais importante. As lutas pela preservação da
natureza e das liberdades das minorias, importantes como elas são, devem ser
acopladas a esse fio condutor que implica a superação de todas as injustiças.
Não é assim que a fração 'expressivista' percebe o mundo. As lutas pelas minorias
e pela natureza preservada são levadas a cabo, na realidade, “em substituição”
a uma pauta mais abrangente que permitiria ligar essas lutas à luta geral
contra todo tipo de opressão material ou simbólica. ||| Tudo se dá como se esse pessoal
“bem-intencionado” morasse em Oslo e tivesse apenas relações com seus amigos de
Copenhague e Estocolmo, acreditando, ao fim e ao cabo, morar na
Escandinávia e não no Brasil. Para um sueco, que efetivamente resolveu os
problemas centrais de injustiça social e distribuição de riquezas, não é
estranho que se dedique à preservação de espécies raras e faça dessa luta sua
atuação política principal. Que um brasileiro faça o mesmo e se esqueça da
sorte de tantos seres humanos tão perto dele é apenas compreensível se ele os
torna invisíveis. Por conta disso decidi chamar essa fração da classe média,
que tira onda de moderna e emancipadora, de classe média de Oslo. Ela é
fundamental para que possamos compreender o Brasil moderno como veremos. ||| Os eleitores da candidata Marina Silva
são exemplos clássicos desse tipo de classe média. Como a questão da divisão de
riqueza e poder, o que realmente importa na sociedade está em segundo plano, o
capitalismo financeiro está muito à vontade nesse esquema. Explorar mulher ou
homem, branco ou negro, heterossexual ou homossexual, não apresenta qualquer
diferença para o capital financeiro. Não à toa a candidata é apoiada por bancos
conhecidos. A Rede Globo também nada de braçada nesse mundo do pseudocharme
emancipador. Essa é a inteligência do novo capitalismo, que usa a linguagem da 'emancipação' para melhor oprimir e explorar. ||| Na outra ponta desses 40% da classe
média de maior capital cultural comparativo, temos a menor fração entre todas
que é a denominada de 'crítica'. Ela perfaz nos nossos cálculos apenas
15% do total da classe média. O que faz com que a denominemos de 'crítica' ' não é
nenhuma tomada de posição política particular, mas sim uma “atitude em relação
ao mundo” singular. O mundo social é percebido como “construído” o que enseja
também uma atitude mais ativa em relação a ele. Essa atitude básica se
contrapõe a percepção do mundo como “dado”, como uma “natureza” sob outra
forma, em relação à qual é preciso se adaptar. A forma de adaptação mais comum
é se sentir pertencendo a correntes dominantes de opinião. A pequena fração
crítica tem que navegar em mares turvos, já que em luta constante contra a
corrente dominante. Ela mostra a dificuldade de se chegar a formas de liberdade
pessoal e social e de autonomia real no contexto de uma sociedade perversa e
repressiva. Por conta disso, ela também é prenhe de contradições como todas as
outras frações. ||| Quanto às frações dominantes,
responsáveis pela ampla maioria de 2/3, a análise das entrevistas me levou a
separá-las em “protofascista” e “liberal”. Essa é a classe média tradicional
do “conhecimento técnico”, ou seja, daquele tipo de conhecimento que serve
diretamente às necessidades do capital e sua reprodução, de menor contribuição
para a transformação da própria personalidade. Essa, inclusive, a própria
personalidade, não é vista como um processo de descoberta e criação. O
distanciamento em relação a si mesmo, assim como o distanciamento reflexivo em
relação à sociedade, exige pressupostos improváveis. Daí que sejam raros, mesmo
na classe média privilegiada. ||| Para que se perceba a vida como
invenção é necessário saber conviver com a incerteza e a dúvida, duas das
coisas que a personalidade tradicional e adaptativa mais odeia. A convivência
com a dúvida é afetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. O maior
desafio aqui não é simplesmente “cognitivo”, mas de natureza “emocional”.
Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança das certezas
compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da
própria justeza e correção. Andar na corrente de opinião dominante com a
maioria das outras pessoas confere a sensação de que o mundo social
compartilhado é sua casa. ||| Essas são as frações mais suscetíveis à
imprensa e ao seu papel de articular e homogeneizar um discurso dominante para
além das idiossincrasias individuais. O que a grande empresa de comunicação “vende” a seu público cativo é essa tranquilidade das certezas fáceis, o que
torna o moralismo cínico da imprensa – que nunca tematiza seu próprio papel nos
esquemas de corrupção – o arranjo de manipulação política perfeito para esses
estratos sociais. É esse compartilhamento afetivo e emocional, já advindo da
força da socialização familiar anterior, que faz com que essas pessoas procurem
o tipo de capital cultural mais afirmativo da ordem social. Nele o “capataz da
elite”, que ajuda a reproduzir na realidade cotidiana todos os privilégios que
estão ganhando, está em casa. ||| Se essas são as frações de classe média
cujas cabeças são feitas pela mídia tradicional e dominante, o processo não é
unilateral. A mídia não cria para eles uma interpretação do mundo do nada.
Trata-se muito mais de uma dialética de interdependência, através de que a mídia aprende a
se comunicar com sua classe de referência e seus consumidores mais leais,
enquanto as frações tradicionais recebem da mídia o que precisam: um discurso
homogêneo e totalizador que permita a defesa de suas opiniões, generalizado e
compartilhado o suficiente para lhes dar as “certezas” de que tanto precisam. O
conforto aqui é aquele que legitima a vida tradicional e afirmativa do mundo. A
tranquilidade de se estar no caminho certo, correção que não é por
definição uma descoberta pessoal e arriscada, mas sim aquela que se percebe
correta porque se tem a companhia da maioria. ||| Essas são também as frações do
“moralismo”, ou seja, daquela noção de moralidade tão pouco arriscada e
construtivista quanto sua forma de cognição do mundo. O que é “justo” e “moral”
não é percebido como algo que se construa paulatinamente, à custa de
experiências cotidianas desafiadoras, em um processo de aprendizado doloroso
por meio do qual se reconhece, no melhor dos casos, nosso próprio envolvimento
em tudo aquilo que criticamos da boca para fora. Esse tipo de aprendizado moral
que exige o incondicional reconhecimento de que o mal nos habita a todos, e que só
nos livramos dele apenas parcialmente e ainda assim sob o custo de uma
vigilância eterna. ||| O “moralismo” é muito diferente. Ele
pula todas as etapas arriscadas e incertas e abraça só o produto fácil, vendido a baixo custo pela mídia e pela indústria cultural construída para
satisfazer esse tipo de consumidor: a “boa consciência” das certezas
compartilhadas. É nesse terreno que o “liberal” se afasta do “protofascista”.
Para o liberal, os rituais da convivência democrática são constitutivos, ainda
que possa ser convencido das necessidades de “exceções” no contexto
democrático. Ele é tipicamente do tipo de 'classe média' que se sente enganado,
hoje em dia, pela propaganda do golpe vendido como combate contra a corrupção.
As “exceções” da ordem democrática não se reverteram em “mais democracia” como
ele, pelo menos em nível consciente, legitimava seu apoio ao golpe. ||| O “protofascista”, que na verdade se
espraia da classe média para setores significativos das classes populares, é
bem diferente. O golpe lhe trouxe o mundo onde pode expressar legitimamente seu
ódio e seu ressentimento. O ódio às classes populares é aqui aberto e dito com
orgulho, como expressão de ousadia ou sinceridade. O “protofascista” se
orgulha de não ser “falso” como os outros e poder dizer o que lhe vem à mente.
O 'mal' e o 'bem' estão claramente definidos e se confundem com a própria
personalidade. Mais ainda: como nunca exercitou autocrítica, o
“proto-fascista” tem uma sensibilidade à flor da pele e qualquer contraditório aciona
uma reação potencialmente violenta. Assim, qualquer crítica é percebida como
negação da personalidade como um todo, pela ausência de qualquer distanciamento
em relação a si mesmo, gerando uma violência também totalizadora. Essa
“banalidade do mal” não existia antes entre nós. ||| É aqui que chegamos aos dias atuais. A
“versão turbinada” do preconceito de classe entre nós se deu pela associação
entre imprensa manipuladora, sob o comando da Rede Globo de televisão, além da operação “lava
jato”, a maior farsa do Brasil moderno. Como foi possível transformar o
preconceito cuidadosamente mantido com “fachada científica” na violência aberta
dos dias de hoje? O conluio Rede Globo - “Lava Jato” é a resposta. A Rede Globo
articulou uma “soberania virtual e televisiva” como substituta da soberania
popular, com apoio “político” da lava jato, levando a criminalização não só da
política, mas, também, da própria ideia de igualdade social. ||| O objetivo inicial do conluio entre Globo e Lava Jato foi a destruição do PT e dos movimentos populares que o
apoiam. A Lava Jato forneceu concretude ao ataque à democracia pelos vazamentos
seletivos ilegais até as eleições municipais de 2016, fazendo a população crer que apenas o PT havia cometido ilegalidades. Com essa fraude logrou dizimar o
partido e fazer o PSDB renascer das cinzas nas eleições de 2016. Tudo em nome
da verdade e da democracia. A mentira institucionalizada pelas corporações do
Estado, que deveriam zelar por aquilo que estavam destruindo, só pouco tempo
atrás veio à tona. O que está em jogo, portanto, não é apenas o ataque à
democracia e ao princípio da soberania popular. Mas também ao próprio princípio
da igualdade social, que é a bandeira máxima do PT. ||| Depois que a noção de soberania pelo
direito divino dos reis com sangue azul perdeu validade, o único princípio que
justifica e legitima o poder no ocidente é a soberania popular consagrada pelo
voto. Não existe saída ao tema da soberania popular como
única forma legítima de exercício do poder político. A opção à soberania
popular é a violência ditatorial. Não existe nada “no meio caminho” entre
soberania popular e violência nua e crua, assim como não existe mulher mais ou
menos grávida. Assim sendo, a Globo, no seu ataque a ideia de soberania
popular, teve que se valer de uma fraude bem perpetrada: ao chamar seu público
cativo às ruas, primeiro a fração “protofascista” e só depois, com os vazamentos
seletivos apenas contra o PT, porções significativas das outras frações, a Globo
fabricou a ilusão da “soberania virtual”. ||| A “soberania virtual” coloniza o
potencial legitimador da soberania popular ao dar a impressão que a “corrige em
ato”, com o povo nas ruas sob a máscara de uma democracia direta comandada pela Rede Globo, corrigindo o que se fez nas urnas, supostamente sem “saber o que se
estava fazendo”. Sem isso não se entende de onde a Globo e a grande imprensa a
serviço da “elite do saque” retiraram legitimidade para realizar a lambança que fizeram no país, tirando onda de que estavam interessadas no “combate à corrupção”.
Sem a fraude gigantesca da “soberania virtual” não se compreende o que se
passou de 2013 a 2016, sob a batuta dessa “fábrica de mentiras”
institucionalizada, hoje literalmente tão sem controle quanto as instituições e
corporações do Estado que a Globo liderou nesse massivo ataque à jovem
democracia brasileira. ||| É claro que as empresas arriscam seu
“capital de confiança” nesse jogo, acreditando que podem fazer seu público de
imbecil o tempo todo. Um cálculo arriscado, se levarmos em conta a ausência
de padrão de comparação do público brasileiro, acostumado a ser usado como massa
de manobra sem nunca ter tido acesso a uma mídia plural. A distorção
sistemática da realidade nos últimos anos superou qualquer coisa que tenhamos
testemunhado antes. A possibilidade de se perceber que as próprias empresas de
comunicação fazem parte do jogo da elite do atraso, na manutenção dos
privilégios de meia dúzia em desfavor da população como um todo, torna-se hoje, mais que nunca, um risco real. ||| Repare o leitor que jamais se reflete
acerca de um sistema político construído para ser corrupto, ou seja, construído
para ser comprado pela elite do atraso, a fim de manter seus privilégios econômicos.
O ataque midiático é feito para parecer que a corrupção é obra de pessoas
privadas ou partidos específicos. Isso acontece, mesmo que esse tipo de manobra
manipulativa, como vemos em meados de 2017, não tenha como se manter no
decorrer do tempo, agora que o PSDB, o partido da elite financeira, esteja no centro dos escândalos. Mas entre 2013 e 2016 apenas o PT foi
criminalizado e viu sua representação ser dizimada pelos “vazamentos seletivos”
comandados pela mídia e pelos aliados no aparelho do Estado. ||| O crescente apoio popular à ditadura,
assim como as formas não democráticas de sociabilidade e de ódio aberto
que se instauraram no Brasil deste então, tem nessa fraude midiática gigantesca
seu início. É que o ataque não se limitou à democracia. A Globo como que
concentra o ódio secular e escravocrata ao povo e passa a expressar o pacto
elitista e antipopular em ato. A perseguição seletiva e sem tréguas ao PT e aos
movimentos sociais que o apoiam equivalem a um ataque ao princípio da
“igualdade social” como valor fundamental das democracias ocidentais. É que a
luta contra a desigualdade do PT e de Lula foram tornados, pela propaganda
televisiva, em mero instrumento para a corrupção no Estado. ||| Como o PT foi o motor recente da
ascensão social dos miseráveis e pobres em geral, atacá-lo como corrupto e como
“organização criminosa” – sendo acompanhada pelos próprios agentes do Estado
envolvidos na operação Lava Jato nesse ataque inescrupuloso – equivale a tornar
suspeita a própria demanda por igualdade. É a igualdade que é tornada “meio
para um fim”, no caso a suposta corrupção, o que implica retirar sua validade
como “valor”, ou seja, como um fim em si. A GLOBO e a grande mídia – e sua
aliada a operação Lava Jato – não só contribuíram para o mais
massivo ataque à democracia e ao Direito brasileiro de que se tem notícia, mas
atacam também, em uma das sociedades mais desiguais e perversas do planeta, a
igualdade social como princípio ao torná-lo suspeito e mero instrumento para
outros fins. ||| Depois, quando o ódio passa a grassar
no país e figuras que representam o elogio à tortura e a violência mais
grotesca, como Jair Bolsonaro e seu fascismo aberto, passam a representar
ameaças reais à democracia e aos direitos humanos mais elementares, a Globo e a
grande mídia tira onda de quem não tem nada com isso. Esconde o fascismo que
pratica diariamente e critica o resultado que produz sem assumir a menor
responsabilidade pelo que faz. A Globo e a operação Lava Jato, no entanto, são
os agentes principais dessa verdadeira “regressão civilizacional” que sacode o
pais deixado em frangalhos, econômica, política e moralmente, pela ação
combinada desses agentes. Para sua audiência imbecilizada, no entanto, como a
globo critica Bolsonaro da boca para fora, sua ação a favor dos valores
antidemocráticos que é o que, na realidade, cria o campo de ação para os
“Bolsonaros da vida”, passa despercebida. ||| A Globo e a grande mídia colonizam para
fins de negócios, escusos ou não, toda a capacidade de reflexão de um povo, ao
impossibilitar o próprio aprendizado democrático que exige opiniões
alternativas e conflitantes, coisa que nunca ninguém viu acontecer em época
alguma em nenhum de seus programas. Isso equivale a imbecilizar uma nação que
certamente não nasceu imbecil, mas foi tornada imbecil para os fins comerciais
de uma única família que representa e expressa o pior de nossa elite do saque e
da rapina. ||| O que se perde aqui é simplesmente o
recurso mais valioso de uma sociedade que é sua capacidade de aprender e refletir com base em informações isentas. Distorcer sistematicamente a
realidade social e mentir e fraudar uma população indefesa é, por conta disso,
fazer um mal incomparavelmente maior que surrupiar qualquer quantia financeira.
É que o mal aqui produzido é literalmente impagável. O que se frustra aqui são
os sonhos, os aprendizados coletivos e as esperanças de centenas de milhões. O
que se impede aqui é o processo histórico de aprendizado possível de todo um
povo, abortado por uma empresa que age como um partido político
inescrupuloso. Isso apenas para que fique registrada a noção de mal maior em
uma sociedade que tende a perder qualquer critério de aferição e de comparação
de grandezas morais. ||| Com o cidadão feito de completo
imbecil, é fácil convencê-lo de que a Petrobras, como antro da “corrupção dos
tolos”, só dos políticos, tem que ser vendida aos estrangeiros 'honestos' e
'incorruptíveis' que nossa inteligência “vira lata” criou e nossa mídia repete
em pílulas todos os dias. Com base na “corrupção dos tolos” se cria, na
sociedade imbecilizada por uma mídia venal que distorce a realidade para
vendê-la com maior lucro próprio, as pré-condições para a “corrupção real”, a
venda do país e de suas riquezas, a preço vil. ||| O fundamento da confusão entre
“corrupção real” e “corrupção dos tolos” é uma leitura enviesada e interessada
da sociedade brasileira que, no entanto, logrou confundir e enganar tanto a
direita quanto a esquerda. É necessário se aprender com a nossa catástrofe que
é recorrente. As falsas ideias existem para fazer as pessoas de idiotas, posto
que apenas elas dão de bom grado e volitivamente o produto de seu
esforço e trabalho diário a quem os engana e oprime. Sem uma crítica das ideias
não existe prática social verdadeiramente nova. A ideia central que nos faz de
tolos é a de que nossa história e a história de nossas mazelas tem sua raiz no
patrimonialismo só do Estado. Foi por conta dela que Rede Globo e Lava Jato
legitimaram seu ataque combinado a economia e a sociedade brasileira. É a
pseudo explicação patrimonialista, que está no lugar da explicação pela
escravidão e por sua herança de ódio, espoliação e humilhação dos mais
frágeis.
(*) JESSÉ SOUZA graduou-se em Direito pela Universidade de Brasília (1981), onde concluiu o mestrado em Sociologia, em 1986. Doutorou-se(1986) em Sociologia pela Karl Ruprecht
Universität Heidelberg (Alemanha),
país onde obteve livre docência nessa mesma disciplina(na Universität
Flensburg) em 2006. Também fez pós-doutorado em Sociologia na New
School for Social Research, Nova Iorque(1994/1995). Escreveu
e organizou 22 livros, em português, inglês e alemão sobre Sociologia Política,
Teoria da modernização periférica e desigualdade no Brasil contemporâneo. É
professor titular de ciência política na Universidade Federal
Fluminense, em Niterói,(RJ). Em 2 de abril de 2015 foi
nomeado para a presidência do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA),
mas demitido em 2016, logo após o golpista Michel Temer apropriar-se da
presidência da República.
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