segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A elite  brasileira  não reconhece  nosso  povo

apartbeluzzo

Tempos atrás,  Saul Leblon, na Carta Maior, relembrava que Sergio Buarque de Holanda antevia, em 1936, “as raízes de um Brasil insulado em elites indiferentes ao destino coletivo”, onde o engenho “era um Estado paralelo ao mundo colonial”.
Ninguém desfruta 388 anos de escravidão impunemente, escreveu.”Os alicerces do engenho ficaram marmorizados no DNA cultural das nossas elites: nenhum compromisso com o mundo exterior, exceto a pilhagem e a predação; usos e abusos para consumo e enriquecimento”.
O artigo de Luiz Gonzaga Beluzzo, na Carta Capital, faz uma reflexão amarga sobre a ressurgência deste sentimento, quase umapartheid atávico, que nos retira ainda a condição de nação, porque é uma partição interna própria das colônias esta falta de identidade.
Os “dois Brasis”, a “Belíndia”, o “Primo Rico e o Primo Pobre”, o “horror a pobre” podem ser balelas na economia, mas são realidade nas superestruturas ideológicas da sociedade brasileira. E isso contamina, com me ensina o mestre Nílson Lage, até mesmo parte de sua pseudo-esquerda, mesmo diante dos perigos de ruptura da trajetória democrática e inclusiva recente, acha que se deve cuidar das  pequenas vitória das “minorias”, enquanto a maioria se arrebenta.

Um certo Brasil                     

O horizonte já está toldado pelas nuvens negras do retrocesso almejado pelos verdadeiros donos do País...

Luiz Gonzaga Berlluzzo                  CARTA CAPITAL

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Aeroporto
      Brasil, o lugar onde quem convive no mesmo território nem sempre frequenta a mesma sociedade
Um grande e velho amigo tem o hábito de estender a mão, cumprimentar e conversar com os funcionários ao chegar à sua empresa. Pergunta pela família, quer saber dos filhos, os pequenos, os adolescentes e os crescidos. Brinca com os torcedores adversários nas derrotas de seus times e até mesmo ironiza os fanáticos da sua banda futebolística.
Numa dessas, estendeu a mão para cumprimentar o jardineiro recém-chegado. Ele cuidava das orquídeas e bromélias espalhadas à frente do edifício da diretoria. Diante da mão estendida, o jardineiro mostrou as mãos sujas de terra e sacudiu os braços em um gesto de frustração. Meu amigo não desistiu: abraçou o artesão da natureza. O trabalhador ficou surpreso e no almoço com os companheiros não se cansava de dizer: nunca havia sido tratado “dessa maneira”. 
“Essa maneira” revela muito mais do que um abraço. O abraço e seu reconhecimento, mais o reconhecimento do que o abraço, revelam as entranhas de um certo Brasil. Os habitantes desse país dentro do País não veem as pessoas.  As pessoas, gente, humanos, eles e elas, aqueles que começaram a aparecer nos aeroportos, nos supermercados, nos shopping centers, percebem que os de cima sentem que “eles não são o que nós somos”. Não conseguem reconhecer o outro. Convivem no mesmo território, mas não frequentam a mesma sociedade. Querem dizer: eles não são nossos semelhantes. São nossos servidores. 
Na onda de louvação das virtudes do mundo globalizado, a rejeição ao “nacional” atingiu camadas profundas das almas excelentes. A nova rejeição é mais profunda porque, de forma devastadora, erodiu os sentimentos de pertinência à mesma comunidade(AQUI) de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e desidentificação em relação aos “outros”, ou seja, à massa de pobres e miseráveis que “infesta” o País. E essa desidentificação vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo(AQUI) agressivo e antirrepublicano
A rejeição também foi mais ampla porque essas formas de consciência social contaminaram vastas camadas das classes médias: desde os “novos” proprietários, passando pelos quadros técnicos intermediários até chegar aos executivos assalariados e à nova intelectualidade formada em universidades estrangeiras ou mesmo em escolas locais que se esmeram em reproduzir os valores do individualismo agressivo. Isso para não falar do papel avassalador da mídia. 
Os brasileiros de anedota e champanhota jamais aceitaram o liberalismo político e a democracia dos iguais e diferentes, criações insuperáveis da aurora burguesa. Por isso, quando dizem defender a liberdade de expressão, sinto calafrios. A liberdade de expressão é uma prerrogativa do cidadão e não um monopólio das empresas de comunicação. Esse direito fundamental não está ameaçado. Muito ao contrário. Tem sido exercido nos baixios da ignorância e da manipulação descarada. 
Talvez remanesça a tal ameaça à liberdade de expressão nos esgares dos nostálgicos dogolpe de 64, agora embuçados em suas máscaras de pais da pátria e defensores da democracia. Ainda me lembro das proclamações exaltadas contra a subversão e a corrupção às vésperas do golpe de 1964. Foram essas consignas que envenenaram o ambiente político e social. 
As “forças democráticas” nativas estavam arquitetando a supressão da democracia. Da conspirata participavam naturalmente os homens de bem: os senhores da mídia, empresários, parte da classe média ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada. Alguns intelectuais preparavam as malas para se juntar aos golpistas e executar seus projetos pessoais à sombra da censura e ao abrigo da escuridão.
Um certo Brasil é o país dos senhoritos arrogantes e presunçosos, sempre convencidos de sua superioridade moral e intelectual. Há tempos recebi interpelações dos que diziam defender a Democracia Esclarecida. É uma boa ideia. Espero que não guarde parentesco com a preconceituosa pretensão de uma Democracia Exclusiva dos que se autointitulam Esclarecidos. Há esperança: os Esclarecidos correm o risco de ser abalroados pelos ardis da razão, trombando com as ideias do projeto do Esclarecimento do século XVIII. Estão também ameaçados de compreender a luta dos subalternos no século XX. Luta que culminou na conquista dos direitos sociais e econômicos do pós-Guerra. O Brasil chegou muito tarde a esse estágio do convívio social e o horizonte já está toldado pelas nuvens negras do retrocesso almejado pelos verdadeiros donos do País.  
A alteridade democrática assenta-se no reconhecimento da diferença e da igualdade. Ostotalitarismos da modernidade, à esquerda e à direita, praticaram a violação sistemática do equilíbrio entre igualdade e diferença, mergulhando os cidadãos no igualitarismo manipulador da indiferenciação de massas. 

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