A rua cobra uma resposta crível contra o arrocho
Trata-se de
repor o curso da nação no trilho da democracia social. E não apenas de fixar uma lápide exclamativa no acostamento da História...
A resistência democrática
consolidou um enorme avanço no dia nacional de luta da última sexta-feira
(10).
Com menos de um mês de iniciativas e mobilizações
esparsas, as frentes progressistas provaram sua capacidade de articulação, ao
realizarem um protesto massivo contra o golpe em todo o país.
Milhares de pessoas tomaram as ruas do Brasil, com ecos
notáveis no exterior e a consolidação de um sentimento que adicionou uma nova
legenda ao vocabulário político e cultural da sociedade: ‘Primeiramente, fora
Temer’.
Não é pouco.
Quando a alma de uma nação consegue encontrar seu
idioma comum, capaz de traduzir e catalisar sentimentos, demandas, setores,
opressões e revoltas novas e velhas, coisas extraordinárias podem acontecer.
Essa antessala do novo – e como tal, criativa, colorida e
ecumênica-- está delineada no Brasil.
Expressa-se em intervenções ininterruptas, que vazam de
manifestações programadas para escrachos espontâneos, de gritos abusados nas
ruas e restaurantes, a protestos solenes nos palcos, do funk da periferia a
cineastas em Cannes, de torcidas de futebol a balés clássicos, das organizações
GLST a chefs de cozinha...
Basta uma frase impressa em sulfite, guardada no bolso ou
na bolsa.
Como explicou a atriz Roberta Estrela D’Alva, em
reportagem na Folha (‘No calor da hora), este é o novo artigo de primeira
necessidade no Brasil pós-golpe: uma folha de sulfite escrito ‘Fora Temer’
-- ‘sempre pode ter uma câmera da rede golpe gravando ao vivo’, diz ela.
Se antessala está erguida, falta definir a arquitetura do
resto da construção renovadora.
As ruas do Brasil sabem o que não querem.
O arrocho golpista que uniu a escória política, a
plutocracia, a mídia, esferas do judiciário e a rapinagem internacional
pretende congelar por décadas o valor real do orçamento público.
Significa, na prática, impor o Estado mínimo à sociedade
através de uma fórmula de aparente sensatez contábil, da qual se exclui
ardilosamente uma variável chave: a tributação do grande dinheiro (operações
financeiras de estrangeiros e dividendos, por exemplo) e a progressividade
tributária das grandes fortunas.
Se o ardil se efetivar, calcula-se uma perda anual de
gastos –sobretudo nas áreas sociais-- de R$50 bi, comparativamente à manutenção
do padrão de crescimento real nos últimos anos.
Daí desmonte antecipado e o esvaziamento paralisante de
áreas e ministérios marcados para morrer de inanição orçamentária.
O país deixou claro que não aceita a solução que pretende
empurrar a pasta de dente de volta ao tubo da exclusão e da desigualdade.
Um vazio, porém, ficou patente nos discursos proferidos
pelas lideranças ovacionadas nas ruas do país última sexta-feira, como
aconteceu com Lula, em São Paulo, aclamado por cerca de 100 mil pessoas na
avenida Paulista.
Falta um arremate à narrativa da luta pela legalidade.
Falta unificar os pilares da ponte capaz de interligar a
retomada do poder pela Presidenta Dilma Rousseff e o day after da nação –sendo
que a própria Presidenta admite a necessidade de se repactuar a nação, ou
ninguém a governará.
A incógnita não permanece em aberto por acaso.
Num certo sentido, ela foi o motor subjacente à
encruzilhada que levou o país ao golpe.
As bases do pacto que sustentou a última década de
desenvolvimento desapareceram.
O que poderá sucedê-las e, sobretudo, quem acumulará a
força e o consentimento necessários para conduzir a negociação do trajeto
futuro?
Ao primeiro sinal do colapso da engrenagem, essa força
‘desfrutável’ sofreu violenta mutação.
Com agenda própria de negócios, como disse Dilma na
mencionada entrevista a Nassif, concluiu sua baldeação para a direita –e a
extrema direita-- sob a liderança da expressão mais transparente da
escória parlamentar: Eduardo Cunha
Poderia ter sido diferente?
Dilma na Rede TV admitiu ter-se aliado a pessoas erradas.
E Lula, na Paulista, refez os cálculos de 1993, quando afirmou que o Congresso
tinha 300 picaretas.
O ex-presidente acredita que desde então o quórum se
ampliou.
Isso repõe em novas bases de redobrada urgência a
incógnita subjacente ao arremate que faltou tanto no discurso do ex-presidente
na Paulista, quanto no de Guilherme Boulos, e por certo no de lideranças
importantes de norte a sul do país, na última sexta-feira.
Qual será a nova institucionalidade capaz de repactuar a
nação e o seu desenvolvimento, diante do crepúsculo de um centro que se
transmudou de criatura em criador?
A polarização, diga-se, não é exclusividade brasileira.
Trata-se de um traço da montanha desordenada de ruínas
institucionais e sociais que se evidenciou em 2008, após quarenta anos de
hegemonia neoliberal e sua correspondente corrosão do ambiente do trabalho, dos
direitos sociais e da democracia.
A esfinge ronda o campo progressista desde as
articulações para a reeleição de Dilma, em 2014 e explica, em parte, ao menos,
a própria guinada ortodoxa do início do seu segundo governo --claro sinal
de dissolução estratégica e política.
A impressionante –e ainda pouco analisada—irrupção da
resistência quase espontânea ao golpe adiou por um momento o debate desse
esgotamento de ciclo.
Mas a própria aceleração das mobilizações o repôs
novamente, agora em termos incisivos, como que a dizer às lideranças novas e
velhas que estão à frente da luta contra o golpe: ‘decifra-me ou te devoro’.
O editorial de Carta Maior da última semana trata
justamente desse divisor crucial ao deixar claro que não basta eleger uma ponte
de transição entre a volta de Dilma e o day after da governabilidade.
É preciso dizer o que vai passar por ela –tenha ela a
forma de um plebiscito ou de qualquer outra opção de consulta popular
‘A resistência ao golpe precisa construir uma pauta de
nação que agregue à luta pela legalidade uma dimensão mudancista’, dizia o
editorial.
Mais que isso: essa dimensão mudancista requer um
equilíbrio justo entre mobilizar ruas e ocupar trincheiras até fisicamente para
impedir o desmonte golpista, e a capacidade de negociar um novo pacto de
desenvolvimento –o que se faz entre interesses contrapostos, por
definição.
As ruas cobram uma plataforma crível e factível de
retomada do desenvolvimento contra o arrocho.
Trata-se de repor o curso da nação no trilho da
democracia social. E não apenas de fixar uma lápide exclamativa no acostamento
da história.
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