De Weimar a Curitiba: golpe à democracia,
ontem e hoje
Em Weimar, como em Curitiba, a mídia cumpriu o papel de dilapidar o
Estado democrático ao apoiar a ascensão de forças autoritárias afinadas com o
fascismo...
Uma República, a de Weimar (1920), na Alemanha, , e outra pretensa, a de Curitiba
(2015-2016), e uma perspectiva comum assombrosa, que agora se projeta sobre
Brasília (2016-2017) e todos nós. Há quase cem anos, quando recaía sobre Weimar
o odor sombrio da pólvora recente de 1914-1918, eis que a têmpera dos homens
ainda mal-respondia às inseguranças e a impressão impactante de tanto sangue
que escorrera nos campos de batalha e que, chegada a paz, então passaria a
cobrar de forma dura a vida dos sobreviventes. A pressão dos tempos e o torpor
que se abateu sobre mentes e corações causou inércia política apta a alimentar
o cenário adequado para a emersão de uma nefasta conjunção de ideologias.
Imersa em um contexto de frustração com a capacidade do governo
de
enfrentar as crises em Weimar e face ao esfacelamento dos partidos políticos,
eis que sob tal trilho a ascensão da barbárie nacional-socialista foi
facilitada pelo fato de que os campeões da liberdade weimariana adormeceram
entre a timidez e a tibieza, pela falta de ousadia, e de convicção sobre o
valor da democracia, também embalados pelo descompromisso com o republicanismo
e a escassa coragem cívica para agir em sua defesa. Assistiram passivamente a
erosão das garantias jurídicas e de suas instituições, como se estivessem no
aguardo do anjo salvador que, finalmente, nunca aterrissaria para a obscura
missão redentora, senão apenas para o beijo escorregadio e frio de morte e
defenestramento das instituições democráticas.
Weimar conheceu seus mais graves dias devido a conjunção de dois fatores
diferidos no tempo, a saber, as consequências econômicas devastadoras do
Tratado de Versalhes e, dez anos depois, a gravidade dos efeitos da quebra da
Bolsa de Wall Street em
1929. A isto deve ser somada a importância decisiva da inércia mesclada a
tibieza dos atores políticos e das instituições, que virtualmente alimentaram
as condições de possibilidade para o recrudescimento da crise a níveis
inauditos cujo desfecho é bem conhecido. A crise econômica foi fortalecida pela
cultura política autoritária e pelas práticas fascistas, transgressoras da
legislação democrática com o desassombro dos homens que creem carregar todas as
razões, virtudes e fins elevados deste mundo, o que os legitimaria a impô-los.
Ontem como hoje, a tradição autoritária foi cultivada em atos preparatórios,
exalando o odor fétido da traição à Constituição e à República, e ainda sob o
signo das liberdades foi sendo cozido o fascismo, temperado com as doses
maciças do ódio que o inspira.
Em Weimar, como em Curitiba, a mídia cumpriu um papel ideológico
relevante, em ambos os casos dilapidando o patrimônio do Estado democrático de
direito ao apoiar a ascensão de forças autoritárias afinadas com o fascismo. A
mídia operou em dupla via, deslegitimando o governo democrático e alimentando a
omissão através da semeadura da desilusão políticas nos atores sociais, que ao
sofrer o choque midiático são estimulados à inércia, neutralizando a reação
contra a consolidação antidemocrática.
Weimar sofreu o agudo mal derivado dos movimentos
oligárquico-autoritário-empresariais voltados a corrosão da democracia. Na
década de 1920, como hoje em Curitiba, ocorreu o ataque a Constituição,
neutralizando-a em pontos centrais, cuja atualidade é preciso entender a partir
dos mil tons que o fascismo pode assumir, inclusive através das ações de homens
togados que não estão a serviço do Estado, mas de determinada ideologia
autoritária. Hoje o solapamento da Constituição ocorre através da associação
entre as forças antiparlamentares com o grande poderio capitalista paulistano
que as patrocina. Ontem, como hoje, o projeto antidemocrático precisa de bode
expiatório para o caos pacientemente cultivado pela estratégia de cultura do
ódio e da intolerância fascista.
O ódio foi sendo semeado por irresponsáveis políticos radicais de
direita cujos interesses diretos foram sobrepostos ao público sem que a
esquerda lograsse compreensão suficiente, e eficiente, de todo o processo em
curso para unir forças antes que a ilegalidade se tornasse a regra. A busca
pela encarnação do inimigo do sistema foi a lógica orientadora do autoritarismo
de ontem, como o de hoje, realizando o duplo movimento de patologizar e,
logo, criminalizar o outro. Era
preciso exterminar os entraves de tudo quanto separava a Alemanha de seu grande
destino, e para tanto era necessário eliminar as “existências parasitárias” (parasitenhafte Existenzen), assim como
hoje o ovo da serpente fascista redesenha os seus novos inimigos históricos sob
o pretexto do desenvolvimento econômico.
A desarticulação do republicanismo favorecia o nacional-socialismo,
pois
tolerância e pluralidade não apoiaria um regime frio, autoritário e cruel. A
extrema direita alemã no período weimariano disseminava os valores heroicos e
do extermínio do campo progressista, indivíduos considerados antipatriotas,
inimigos dos genuínos valores germanos. A realização deste projeto demandava
sepultar sentimentos de solidariedade e fraternidade em favor do despertar em
seu lugar dos piores e mais funestos sentimentos humanos, e para isto a
detecção de inimigo(s) era a estratégia mais eficiente. Ontem, como hoje, os
articuladores da derrocada da democracia foram hábeis para construir o
arquétipo de seus inimigos, e assim como os judeus foram identificados como
responsáveis pela debacle econômica alemã, hoje, no Brasil, com o indispensável
apoio midiático, o novo responsável por toda a ordem de males é o campo
progressista, especialmente o Partido dos Trabalhadores.
Não foi necessário revogar a progressista Constituição de Weimar para
que a passagem fosse aberta para o nacional-socialismo e isto evidencia as
manobras constitucionais possíveis. As aparências foram mantidas mas leis
especiais como a Lei de Concessão de Plenos Poderes de
1933 (Ermächtigungsgesetz)
corromperam a ordem democrática. A concessão destes poderes a Hitler pelo
Parlamento para que enfrentasse os propagandeados altíssimos riscos históricos
encarnados pelo incêndio do Reichstag,
foi o pretexto para a instauração da exceção. Ações parlamentares que atropelam
a Constituição precisam ser travadas. O mero consequencialismo orientado por
razões econômicas supostamente calçado na legalidade pode facilmente
desconectar-se dos valores democráticos. Que Curitiba não venha a ter o mesmo
desfecho de Weimar, malgrado o empenho togado curitibano para que os nossos
dias venham a ser mais que sombrios.
*Faculdade de Direito. Universidade de Brasília (UnB / CT)
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