Diante
da situação tenebrosa, notícia
ruim é bênção
Ignácio Loyola Brandão (*)
O 'azheimer' de Sérgio Cabral-pai é uma tragédia, mas o livra de saber das notícias tenebrosas sobre o filho |
Estava em Maceió para os festejos dos 106 anos do Teatro Deodoro, quando li a notícia da
prisão do ex-governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro. Estremeci. No dia
seguinte, vi as fotos de Cabral de cabeça raspada em Bangu e com a camisa de
prisioneiro, como um detento qualquer, bandido pé-rapado. Naquele momento, o Brasil inteiro estava vendo o noticiário. Meu mal-estar piorou. Porque me veio
à mente a figura do Sérgio Cabral, que os amigos passaram a chamar de o velho, amigo, homem honrado, jornalista e escritor. Pensei, como a imensa maioria dos
amigos do velho Cabral: ele estará vendo tudo isso neste momento? E sente o
quê?
Cabral-pai, o segundo, de camisa preta, na capa do PASQUIM |
O velho Cabral (temos um ano apenas de diferença de idade) fez
jornalismo político na UH carioca, foi repórter geral, escreveu a história das
escolas de samba cariocas, as biografias de Nara Leão, Elizeth Cardoso,
Pixinguinha, Almirante, Ary Barroso, Tom Jobim, Grande Otelo, Ataulfo Alves,
compôs algumas músicas, produziu shows, foi vereador. Cabral pai, íntegro,
bem-humorado, irônico, fundador do Pasquim ao lado de Jaguar, Tarso de Castro e
Ziraldo. Uma vez, indaguei dele por que não conseguia encaixar nenhum texto meu
no Pasquim. “Me disseram que por ser paulista, verdade?” perguntei. Ele riu,
nem confirmou nem negou, apenas respondeu: “Deixe de bobagem, esqueça”. Tinha
razão, eu não possuía o estilo Pasquim, não tinha humor, era duro.
Ali em Maceió, imaginei o choque de um pai testemunhando o filho em tal
situação, escândalo nacional, num momento sombrio para o Rio de Janeiro. Do
aeroporto mesmo, enviei pelo fone, um e-mail para Antônio Torres, indagando se
ele tinha notícias do estado de espírito de Cabral pai. E o que poderíamos
fazer para abraçá-lo. Mal cheguei ao hotel, recebi resposta: “Coincidência: a
Nélida Piñon fez perguntas parecidas ontem, na Academia Brasileira de Letras.
Todos que o conhecemos ficamos com preocupações iguais às suas. Cabral, o pai,
é o que antigamente chamávamos de boa-praça. Alguém informou que o velho Cabral
está doente, um tanto quanto fora do ar”.
Fiquei matutando: quanto fora do ar? Quanto ele está vendo, sabendo e
sofrendo? Como receber informação segura? Lembrei-me de Ruy Castro, escritor
ligado à música brasileira. Igualmente, a resposta veio rápida, deixando transparecer
que a preocupação era geral, um buscava no outro algo que nos tranquilizasse ou
entristecesse mais. Ruy respondeu: “Nos últimos três anos, Sérgio pai tem
passado por um processo galopante de Alzheimer ou alguma outra forma de
demência - você não sabia? Sempre fomos amigos. Estive com ele há seis meses.
Me reconheceu e rimos muito, mas só parecia fazer sentido quando falávamos do
passado. Estamos todos torcendo para que ele já não perceba o que se passa ao
seu redor”.
De Maceió fui direto a Pirenópolis, Goiás, para a segunda parte da
Flipiri, festa literária que já pertence ao calendário cultural brasileiro. A
primeira parte foi no início deste ano. Quando lá cheguei, a pergunta era a
mesma: o que Cabral pai estará pensando e sofrendo com este show de horror com
que o filho brindou o Brasil?
A última vez que o vi foi no final dos anos 1990. Flanava por Paris,
quando alguém segurou meu braço, forte: “O que um araraquarense faz nesta
cidade olhando para a Opera. Não tem disso na sua cidade, não é?”. Era Sérgio
Cabral, o pai, jovial, afetuoso.
Agora em Pirenópolis, entre uma palestra e outra, o assunto veio à
baila: o velho Cabral aguentaria aquele tranco? No dia seguinte, fui à pousada
onde Ziraldo, o homenageado da Flipiri, estava hospedado. Era uma calma noite
goianense, do jardim vinha o som de água regando plantas. Não rodeei, fui
direto: “Fale-me do Sérgio pai”. E Ziraldo: “Viu que coisa? Que todos sabiam. O
que aconteceu teria sido uma tragédia com uma figura como o velho Cabral. Mas
olhe o que é a vida! As névoas do Alzheimer se insinuaram, mas provavelmente se
acentuaram quando Sérgio sentiu a realidade. Seria uma forma de negá-la? Hoje,
ele já não distingue o que é e não é, não identifica quem é. Mergulhou no
escuro total, a memória dissolvida”.
Estranha é a vida. Ficamos os dois em silêncio, sucumbidos. Era uma
coisa cruel demais, surreal. Que tempos estamos vivendo? Quando nos alegramos
considerando que uma catástrofe como o Alzheimer é bem-vinda, é porque o mundo
está muito ruim. Alegramo-nos que uma notícia terrível como o Alzheimer seja
saudada como bem-vinda para aliviar, suavizar o choque e tornar desimportante
uma notícia tenebrosa que pode matar uma pessoa de tristeza.
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