terça-feira, 29 de março de 2016

Da hipocrisia  ao 

cinismo e a  crise

de   longo   prazo

Aldo Fornazieri (*)                                      

Se ainda existia algum pedaço de pano velho, um trapo andrajoso qualquer, que conseguisse esconder o rosto hipócrita de algum líder oposicionista que se mobiliza em prol do impeachment, este foi posto ao chão pela lista da Odebrecht, divulgada na semana passada. A luz do dia mostrou aquilo que todos já sabiam: a corrupção é inerente ao sistema político-partidário brasileiro e seu fulcro é o financiamento da política, particularmente. das campanhas eleitorais. Os protestos verde-amarelos do dia 13 também sabiam desta realidade aos expulsarem líderes oposicionistas das manifestações, a exemplo de Aécio Neves. A lista desnudou o fato de que, através da campanha de combate à corrupção e do impeachment, se escondem as hostes medonhas de uma corrupção ampla, irrestrita e antiga.
O que fica claro também é que os operadores políticos do impeachment querem apressá-lo para viabilizar a ideia de que o Brasil foi passado a limpo, com o claro intuito de barrar a Lava Jato e de criar uma imensa farsa de que os honestos assumiram o poder e que merecem crédito. A farsa dos operadores do golpe não é mais sustentável e se Dilma vier a ser afastada isto cria uma enorme dificuldade para o juiz Moro, para o Ministério Público, para a Polícia Federal e para o STF, pois se as investigações cessarem, o caráter de golpe desse movimento ficaria ainda mais evidente nas páginas da história, maculando biografias dos que se querem santificados.
A lista da Odebrecht cria uma dificuldade adicional à Operação Lava Jato: ela oficializa e escancara o fato de que a Operação é parcial, é leniente com a corrupção de boa parte dos políticos brasileiros, assumiu uma conotação claramente partidária e persecutória. Na verdade, os operadores da oposição e da Lava Jato foram para além da hipocrisia moral. Já não se trata mais de fingir a posse de virtudes que não possuem. Já não se trata mais de promover o autoengano e o engano alheio quanto a uma honestidade e imparcialidade inexistentes. Como eles vêm operando sabendo que são falsos moralistas e sabendo que a sociedade sabe que são falsos moralistas, se tornaram cínicos, debochando de todos, pois não há mais vergonha ou pudor, impondo a política da desfaçatez como regra do jogo e a busca do poder pelo poder, do poder sem a legitimidade do voto, como objetivo exclusivo de suas ambições. PMDB e PSDB são os sócios maiores deste deboche.
As Manifestações de Rua
e a Crise Prolongada
As manifestações do dia 13 (verde-amarelas), do dia 18 (vermelhas) e do dia 24 (Povo sem Medo) embaralharam o jogo e complicaram ainda mais as saídas políticas para a crise que estão sendo ensaiadas. As manifestações do dia 13 mostraram em definitivo de que se trata de massas espontâneas, que não seguem nem líderes e nem partidos e que primam por um conteúdo antipolítico. O fato de Aécio Neves e outros oposicionistas terem sido expulsos das manifestações é muito significativo: ele diz que nem o PSDB, nem o PMDB e nem qualquer outro partido de oposição têm hoje força popular e capacidade de mobilização.
As manifestações vermelhas do dia 18 mostram que o PT e os movimentos populares de esquerda, ao contrário do PSDB e do PMDB, ainda têm força mobilizadora e influência política em cerca de 30% da sociedade. É preciso tirar duas conclusões políticas das duas manifestações: a) o impeachment jamais será consenso e, se for levado ao cabo, abrirá uma enorme ferida na democracia brasileira que sangrará no futuro, com  consequências imprevisíveis; b) caso o governo Temer venha a se constituir como um arranjo PMDB-PSDB carecerá de base popular de apoio e corre o grave risco de sofrer um ataque em pinça: de manifestações vermelhas e de manifestações verde-amarelas. A palavra de ordem não será impeachment, mas renúncia, já que se trataria de um governo constituído por um arranjo corrupto e sem legitimidade eleitoral. Poderá ruir como um castelo de arreia. Um possível governo Temer ficaria ainda mais vulnerável se a Operação Lava Jato continuar, seja em Curitiba ou seja, principalmente, em Brasília, na Procuradoria Geral da República e no STF.
Se Dilma for afastada será altamente improvável que o PT venha a fazer parte de qualquer negociação e de qualquer arranjo para dar sustentação ao governo Temer. Se isto viesse ocorrer, seria a ruína definitiva do PT. Movimentos sociais e militantes de esquerda se desgarrariam num movimento sem volta. Na oposição, o partido teria alguma chance de recuperar ao menos parte da força política que perdeu.
Mesmo que a presidente Dilma não seja afastada, a vida do PT não será fácil. Todos sabem que a tendência da economia é de piorar e que o desemprego deve crescer. Todos sabem também que o Brasil precisa de um ajuste forte. O problema é quem vai pagar a conta desse ajuste. Para se viabilizar, o governo terá que fazer uma recomposição de sua base, com mais concessões a setores do PMDB e de partidos fisiológicos de centro.
O Surgimento de uma nova força
política e social
É neste ponto que entram as manifestações do Povo sem Medo do dia 24 e também de parcelas significativas de manifestantes vermelhos do dia 18. Boa parte das pessoas que se mobilizaram neste dia, principalmente os jovens, não reza mais pela cartilha do PT e a Frente Povo sem Medo luta pela democracia, contra o golpe, mas também não apoia o PT e o governo. Isto significa que um governo Dilma sobrevivente terá uma oposição popular de esquerda, disposta a se mobilizar nas ruas para defender conquistas e lutar por reivindicações. Esses agrupamentos políticos autônomos e movimentos sociais  de esquerda que não apoiam o PT e o governo, que também não cogiram aderir  ao PSol ou à Rede Sustentabilidade tendem a confluir para uma organização política caracterizada por aquilo que Boaventura Souza Santos denomina de movimento-partido – algo assemelhado ao Podemos espanhol.
Há que se considerar ainda a hipótese da cassação da chapa Dilma-Temer pelo TSE. Esta era a aposta principal do PSDB, mas quando o partido percebeu que seria improvável uma vitória nas urnas passou a apoiar o golpe do impeachment como forma mais efetiva para derrotar o PT e tentar inviabilizar a candidatura de Lula em 2018.
Se essa hipótese se confirmasse ainda neste ano, teríamos novas eleições presidenciais. Se ela viesse a ocorrer a partir de 2017, o Congresso elegeria um novo presidente. Todos esses impasses, se ocorrerem neste ano, evidentemente, seriam mediados por Eduardo Cunha caso o STF não o afaste do comando da Câmara. O fato de Cunha comandar o processo do impeachment e de ser um provável mediador institucional de uma possível cassação da chapa Dilma-Temer representa a maior ignomínia da história política do Brasil. Aqui, novamente, o cinismo da oposição, do PMDB e de parte da grande mídia já não se importa mais com nenhum moralismo, mesmo que falso.
Em face de todos esses cenários – continuidade de Dilma, governo Temer ou novas eleições – o que se pode dizer é que nenhuma dessas possibilidades representará uma solução rápida da crise, seja porque ela apresenta ingredientes econômicos, fiscais e institucionais estruturais, seja porque surgiram forças populares que não aceitarão fazer parte de qualquer “transição transada”, para usar a expressão de Raimundo Faoro. A experiência do PT no governo, através do pacto do ganha-ganha, revelou que se trata de uma estratégia limitada, pois as conquistas de ontem podem se tornar perdas amanhã. É fato que as conquistas dos governos petistas foram importantes. Mas elas produziram também a consciência dos seus limites. Ensinaram aos movimentos sociais e populares que lutam por democracia e igualdade que possíveis alianças táticas não podem barganhar a sua autonomia política e organizacional.
(*) Aldo Fornazieri é professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

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