O que será, que
será, que essa sexta-feira veio propiciar?
A
classe média progressista voltou à rua, antecedida do engajamento dos
intelectuais, ladeada pelas forças populares e a união da esquerda...
Saul Leblon
O que
se viu na avenida Paulista, no coração de São Paulo, na última
sexta-feira, não foi apenas uma surpreendente resposta à convocação para defender
o governo da Presidenta Dilma e a posse do seu novo ministro, Luiz Inácio Lula
da Silva, ambos ameaçados de banimento da vida política nacional.
Foi
tão mais inesperado e valioso o que se deu ali que uma parte predominante da
mídia e de seus analistas, mesmo precificando o pouco compromisso que tem com a
isenção, exorbitou no achatamento dos fatos.
A maioria preferiu pasteuriza-los para caberem em escaladas, manchetes e
colunas recobertas da preguiçosa certeza martelada pelo jogral diuturno:
‘o governo acabou’; ‘a frente progressista e democrática que o sustenta
implodiu’; ‘o PT morreu’ e ‘Lula está destruído’.
Por certo, há traços de verdade em tudo isso. Mas a História é danada para
contradizer o que parece lavrado em pedra e cal.
Uma síntese dessa capacidade de afrontar leituras lineares é mostrada no
Datafolha deste domingo.
Sob indução do massacre midiático diuturno, Lula é rejeitado por 57% -- o que
demonstra o grave dano causado a sua imagem pelo cerco conservador.
Quando avaliado pela experiência realmente vivida, porém, é apontado como o
melhor presidente da História por 35%. O percentual é o dobro daqueles 17% de
intenções de voto que reúne nas enquetes sobre 2018, e que já o colocam no
segundo turno, qualquer que seja o cenário da disputa. Com acesso à mídia
indisponível hoje, teria dificuldades insuperáveis de abocanhar esse potencial?
Foram
essas estripulias latentes da História –e as advertências que elas encerram — que
ficariam igualmente evidentes nas manifestações da semana passada, não
limitadas ao gigantesco ato na maior vitrine política do país, mas estendidas
como um rastilho de irrupções igualmente surpreendentes a todos os estados
brasileiros.
A demonstração de que o governo tem base social disposta a defendê-lo teve sua
escala ocultada pelo jornalismo dito 'isento', mas ficou registrada em milhares
de fotos e imagens captadas pelas redes sociais, e também pela cobertura
singularmente equilibrada da Band News, no caso de São Paulo, que transmitiu o
discurso de Lula ao vivo e na íntegra.
Visto em conjunto, o acervo minimizado pela mídia amplifica o significado da
transformação ocorrida na avenida em que, dias antes, horas antes, minutos
antes, anunciava-se como o túmulo simbólico do governo eleito há um ano e três
meses por mais de 54 milhões de votos.
Razões que ainda exigem uma decantação mais profunda fizeram com que
um Brasil que parecia ter deixado de existir, ressuscitasse ali com
renovado vigor e recusasse a tumba.
Milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de pessoas; ou com maior
precisão geográfica, onze quarteirões transbordando por alamedas adjacentes
foram ocupados com densidade só inferior a dos salões em terça-feira gorda de
carnaval.
O que importa aqui, de qualquer forma, não é disputar a exatidão estatística disso
que sacudiu as certezas de véspera do conservadorismo brasileiro. Mas, sim,
sublinhar a composição inusitada dessa manifestação, o que talvez explique uma
parte apreciável de sua abrangência e, sobretudo, a extensão de suas
consequências políticas, por certo muito superiores ao desdém martelado pela
informação de baixa qualidade e discutível profissionalismo predominante hoje
no Brasil.
A contrapelo da extrema-unção lavrada nas análises que anunciam o isolamento
terminal do governo, de Lula e do PT, o fato é que a classe média ausente em
quase todas as manifestações anteriores convocadas pelo bloco progressista,
ressurgiu desta vez na avenida Paulista.
E o fez fortemente representada em todas as faixas etárias --e não apenas
através da maciça presença da juventude (12% dos presentes, segundo o
Datafolha, teriam entre 21 e 25 anos, contra apenas 5% no dia 13).
Cerca de 45% dos que lotaram a Paulista na sexta-feira, segundo o Datafolha,
tem renda entre 5 e 20 salários --ao lado de outros 44% de presença popular com
rendimentos de 2 a 5 salários.
Ou seja, uma classe média progressista, que historicamente sempre caminhou ao
lado de Lula e do PT, mas dos quais se desgarraria progressivamente nos últimos
anos, por razões sabidas e não irrelevantes na explicação da encruzilhada atual
do partido, voltou à rua para defender a democracia, o governo, o partido e a
liderança que hoje formam um bloco único ameaçado.
Algo semelhante ocorreu no segundo turno das eleições presidenciais de 2014.
Quando a derrota desenhava-se na espiral descendente da candidatura Dilma, a
intervenção de Lula politizando uma campanha toxicamente publicitária e
burocrática, trouxe a juventude e os cabeças brancas de volta às concentrações
e carreatas.
Nunca porém como nesta sexta-feira, tanto na escala, quanto no arrebatamento do
reencontro histórico com a rua.
Afluência e entusiasmo iguais, na verdade, talvez só encontrem paralelo
recorrendo-se à memória dos grandes comícios de massa da avassaladora campanha
presidencial de 2002.
A ênfase quase exclusiva na estratégia publicitária nas disputas posteriores
subestimou a capacidade de luta e discernimento desse protagonista social que
progressivamente declinaria de posar apenas como figurante das tomadas de cena
da prioridade marqueteira.
O distanciamento da rua e das bases não foi apenas um tropeço de técnica
eleitoral.
Houve um movimento profundo a condicioná-lo. A supremacia do jogo institucional
entre burocracias e o mercado; e delas com o Congresso, com as consequências sabidas
--comprimiu o espaço das ruas e dos movimentos sociais na via do governo
e do partido.
O conjunto reduziu a base, a mobilização e a organização da sociedade a um
adereço do discurso amoroso entre o PT e a sua origem, traída pela voragem das
razões fiscais do Estado e das demandas dos mercados.
Temperou-se nessa culinária o caldo de cultura para o que se consumou agora.
A organização e a conscientização histórica dos 60 milhões de brasileiros que
saíram da miséria e da pobreza e ascenderam na pirâmide da renda no ciclo de 12
anos de governos progressistas, foi menosprezada desastrosamente.
Delegou-se às gôndolas dos supermercados a tarefa de mudar a correlação de
forças, adaptando-se o mito dos mercados racionais à ilusão na
proporcionalidade incremental entre o tíquete médio de compra e o engajamento
histórico progressivo.
A miragem pareceu real enquanto durou o ciclo de vacas gordas.
Ao invés de ser corrigido após o quase desastre eleitoral de 2014 --já sob a
égide de uma subestimada persistência da crise mundial-- o economicismo se
aprofundou de vez no novo mandato da presidenta Dilma.
A um centurião dos mercados foi dada carta branca para proceder a ajustes cuja
pertinência e ponderação só teriam viabilidade se espaçados e negociados com as
forças sociais a partir de uma repactuação geral do desenvolvimento, dotada de
salvaguardas, metas de conquistas e concessões temporárias em todos os
segmentos da economia.
O resto é sabido. Uma espiral descendente impulsionada de forma cada vez mais
violenta pelo cerco das milícias golpistas corroeu, primeiro, o estoque da
credibilidade acumulada no ciclo de alta do crescimento, para agora negar ao
governo, ao partido e ao seu principal dirigente a própria legitimidade
constitucional.
É nesse ponto da curva que a classe média progressista irrompeu na Paulista, ao
lado da força divisória dos sindicatos, das centrais e dos movimento sociais,
para devolver ao vácuo um recheio de reafirmação de valores que surpreendeu
ao próprio PT e desconcertou o conservadorismo que preferiu ignorá-la.
Que isso tenha ocorrido num momento em que o cerco golpista seccionou todos os
canais de diálogo e de comunicação com a sociedade –exceto a mídia
progressista-- instaurando um cinturão desmoralizante para exercitar
diariamente o linchamento histórico do PT, demonstra o potencial auspicioso
desse retorno.
Entender como foi que a seta do tempo se recompôs em condições tão adversas é
crucial para dota-la do impulso necessários à reversão da atual encruzilhada.
Um elemento importante do processo, por certo, passa pela voz novamente audível
dos intelectuais, juristas e artistas que lideraram a viagem de volta da classe
média progressista ao embate político.
Foram eles que nos últimos meses, e com a palpável intensidade de um mutirão
nas últimas semanas, sacudiram a opinião pública brasileira, alertando para o
golpe em curso contra a legalidade, contra os direitos sociais e políticos
abrigados na Carta de 1988, contra a prevalência do interesse público sobre a
lógica privada, contra enfim, os anteparos econômicos, sociais e políticos
construídos arduamente ao longo de gerações para salvaguardar a democracia
brasileira do garrote vil do mercadismo puro sangue que embasa o projeto
econômico da ‘cruzada ética’ ora em marcha, a deslocar cabeças e mandatos à
fogueira da purificação nacional.
Foi sempre assim. E quando deixou de sê-lo nos últimos anos foi porque a inteligência
brasileira sentiu-se igualmente reduzida a uma peça ornamental do projeto
histórico que havia ajudado a construir.
Finalmente, mas certamente não por último, foi esse resgate do protagonismo
intelectual, a iluminar a centralidade do que está em jogo –a defesa da
democracia social contra o fascismo de mercado— que rejuntou progressivamente
as peças trincadas da frente progressista, trazendo de volta às ruas a força da
unidade plural feita de organizações de esquerda, democratas, nacionalistas e liberais
sinceros.
Não há trégua à vista no horizonte político do país.
O conservadorismo nunca esteve tão próximo de golpear o poder nos últimos treze
anos como agora. Não recuará, a menos que seja compelido a isso.
A inesperada ressurgência da massa progressistas na última sexta-feira deve ser
encarada, assim, apenas como um ponto de uma encarniçada luta sem prazo para
arrefecer.
É preciso dar destinação organizativa a esse trunfo. Ou ele se perderá na
voragem dos acontecimentos.
Se é certo que a sexta-feira fortalece governo no braço de ferro em que se
transformou a nomeação de Lula à Casa Civil, não é garantido que isso tenha
êxito e muito menos que se consiga institucionalizar o embate contra o golpe em
curso.
Outras respostas precisam ser formuladas, considerando-se até mesmo a hipótese
de que o braço jurídico do golpe tenha êxito na prisão de Lula.
Há que se ter clareza do nódulo central dentro da centralidade da luta política
nesse momento.
Para tirar o Brasil da crise é preciso devolver à democracia um poder ordenador
que a correlação de força local e global –e a passividade do governo-- cedeu ao
mercado nos últimos anos.
Não se negue à economia leis próprias, circunstâncias limitadoras e incertezas
a exigir gestão, equilíbrio e bom senso na repactuação do desenvolvimento.
Nas crises cíclicas do sistema, porém, quando se pretende descarregar sobre a
sociedade um fardo de sacrifícios dificilmente vendável como ciência ou
fatalidade, é a hora de se afrontar o ‘cientificismo’ dos interesses
conservadores com a natureza crua das coisas.
Democracia e capitalismo predatório deparam-se em pé de igualdade com a disputa
pelo destino da nação e do seu desenvolvimento nesse momento.
O nó górdio que impede o Brasil de extrair as devidas lições dessa janela
reveladora é a rala contrapartida de organização coletiva para levar a cabo a
luta por uma outra agenda de ajuste de recorte popular.
Não há espaço para mágicas na História.
O país não sairá do atoleiro se o sujeito do processo, aquele do qual depende o
respaldo para enfrentar a coerção mercadista, permanecer alheio aos
conflitos que determinarão o seu próprio destino.
O salto em direção a isso hoje no Brasil chama-se frente progressista e
democrática.
E a pergunta que ela enseja às organizações populares é curta e grossa: ‘O que mais precisa acontecer aqui para que as lideranças sociais, partidos,
intelectuais, centrais, personalidades nacionais e mídia progressista anunciem
um comitê unificado contra o golpe e uma agenda política de novas mobilizações
para a repactuação do desenvolvimento brasileiro?’
Foi essa tarefa que a sexta-feira na Paulista delegou às direções e lideranças
que ali se uniram em uma convergência emprenhada de pluralismo e urgências.
A luta progressista ganhou um inestimável bônus de clareza para responder
à clássica interrogação das encruzilhadas históricas: o que fazer?
Fazer da Paulista a contrapartida de uma organização fiel à convergência entre
pluralidade e determinação de luta ali reunidas.
E fazê-lo logo. Enquanto há tempo.
A ver.
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