segunda-feira, 28 de março de 2016

STF deve barrar ‘impeachment’
sem crime de responsabilidade 


Em meio ao turbilhão em que se encontra o país em razão de protestos sociais contra e a favor do Governo Federal, a questão jurídica que envolve o processo de impeachment tem ficado em segundo plano...

Alexandre Bahia,  Marcelo Cattoni          

 e Paulo Oitti (*)


STF deve barrar impeachment sem crime de responsabilidadeSTF deve barrar impeachment sem crime de responsabilidade
Uma questão simplesmente fundamental tem sido ignorada em todos os debates acerca do tema, que mais se transformaram em “guerra de opinião” entre duas torcidas organizadas, a favorável e a contrária à destituição da Presidente da República. Trata-se da diferença fundamental entre Presidencialismo e Parlamentarismo, que está na essência (na natureza jurídica) do instituto do impeachment.

No Presidencialismo, as figuras de Chefe de Governo e Chefe de Estado encontram-se unificadas na mesma pessoa, enquanto no Parlamentarismo tais funções são exercidas por diferentes pessoas. O(A) Chefe de Governo parlamentarista é quem exerce as funções equivalentes ao(à) Presidente da República no presidencialismo no tocante às atribuições deste na condução da política e da Administração Pública. Aqui entra a diferença fundamental entre ditos regimes de governo, a saber, a forma em que pode ser destituído(a) o(a) Chefe de Governo.


No Parlamentarismo, temos o instituto do voto de desconfiança, pelo qual o(a) Primeiro(a) Ministro(a) pode ser derrubado(a) apenas pela perda de confiança do Parlamento. Ou seja, perdido o apoio da base aliada ou em razão de uma grave crise política, pode o Parlamento derrubar o(a) Chefe de Governo, para que outra pessoa exerça essa função (a forma de escolha varia de acordo com a legislação de cada país). E é importante assinalar: aprovada a desconfiança, não só cai o Primeiro Ministro, como o próprio Parlamento, para que novas eleições sejam realizadas. Já no Presidencialismo, temos o instituto do impeachment, que não é sinônimo de voto de desconfiança e isso por uma simples razão: exige-se que o(a) Presidente tenha cometido algum crime de responsabilidade para que ele(a) possa ser destituído(a) da Presidência da República – e porque neste caso se trata de um “crime” e não de mera questão política, o(a) Presidente é retirado de seu cargo e assume o Vice-presidente, além do que os membros do Parlamento permanecem com seus mandatos intocados. 

Não é causa para impeachment eventual descontentamento popular sobre políticas econômicas, assim como não o é (não deve ser) eventual perda de maioria do Chefe do Executivo no Parlamento. Num sistema Parlamentarista, uma e outra causas bastariam para o voto de desconfiança, mas, no Presidencialismo, não é assim que estão postas as “regras do jogo”, sob pena do abuso das regras para se alcançar objetivos escusos, como mostram os ensinamentos de Klaus Günther quando diferencia discursos de fundamentação de discursos de aplicação de normas: é teoricamente legítimo que haja a denúncia e o processamento mas se não nos atentarmos para as particularidades do caso concreto corremos o risco de permitir que as reais pretensões se tornem invisíveis: disfarçar uma tentativa de destituição de um(a) Presidente através de um pedido de apuração de fato que não corresponde a crime de responsabilidade é uma forma contemporânea de golpe de Estado.

Crimes de responsabilidade previstos pela lei, de forma taxativa, de sorte a não caber interpretação extensiva ou analógica para justificar legalmente e constitucionalmente o impeachment fora das específicas hipóteses legalmente positivadas (conforme a doutrina de Marcelo Galuppo, para quem uma das hipóteses objeto de controle judicial do processo de impeachment é “A condenação com base em lei diversa da lei 1079/50”[2]). Isso significa que é inconstitucional a decretação de impeachment sem que se prove a ocorrência de crime de responsabilidade contra o(a) Presidente da República, razão pela qual o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional, enquanto guardião da Constituição, de barrar ou declarar a nulidade de qualquer impeachment recebido pela Câmara ou decretado (em condenação) pelo Senado caso inexistente conduta hipoteticamente subsumível nas taxativas previsões legais que tipificam os crimes de responsabilidade. 

Essa é, precisamente, a questão que é solenemente ignorada pela mídia e pela opinião pública em geral no tormentoso processo de impeachment apresentado contra a Presidente Dilma Rousseff: nenhuma conduta de Dilma Rousseff se enquadra nas taxativas hipóteses de crimes de responsabilidade da Lei do Impeachment (Lei n.º 1.079/50).

(...)


Mas, caso a natureza jurídica do regime presidencialista e do impeachment não convençam o(a) leitor(a), este(a) tem a obrigação de se convencer/conformar com a taxatividade das hipóteses legais de crimes de responsabilidade por outro fundamento, jurídico-constitucional. A saber, o art. 85, parágrafo único, da Constituição Federal, estabelece que os crimes de responsabilidade serão aqueles definidos em lei. Logo, evidentemente não é “autoaplicável” o citado dispositivo constitucional, tanto por sua essência (matéria criminal, que precisa ser especificada em tipos penais taxativos), quanto por sua literalidade (a Constituição remete à lei a definição dos crimes de responsabilidade).

Enfim, tanto a jurisprudência do STF quanto a própria Lei do Impeachment e a própria Constituição deixam claro que os crimes de responsabilidade são 'crimes'  e, como tais, devem ser tratados segundo a interpretação puramente literal (nunca ampliativa nem analógica), como as normas penais em geral. Como crimes, vale a máxima há tanto fixada sobre a aplicação da norma penal: não é possível a analogia “mala partem” e, claro, o princípio constitucional da presunção de inocência.



Ainda que se admita que o procedimento contenha uma natureza também política, é preciso ter claro que ele é um procedimento jurídico e deve ser tratado com a seriedade necessária.

Analisemos, assim, o caso concreto do pedido de impeachment apresentado contra a Presidente Dilma Rousseff.

A denúncia acolhida pelo Presidente da Câmara dos Deputados (que a aceitou pura e simplesmente por ser opositor do Governo, o que é fato notório, amplamente noticiado pelo fato de que ele aguardou a posição de membros do Partido da Presidente se manifestarem em procedimento no Conselho de Ética, para, depois disso, se posicionar sobre o pedido de abertura de procedimento) simplesmente deturpa o significado da Lei do Impeachment para tentar enquadrar as condutas da Presidente da República numa de suas hipóteses, mas sem sucesso, pelo menos para quem leva o Direito e a taxatividade das hipóteses de impeachment a sério.

Primeiramente, tenta dizer que a Presidente teria se omitido em punir pessoas a ela subordinadas que teriam praticado atos de corrupção (etc) e agido de modo incompatível com o seu cargo. Contudo, não há prova nenhuma de que a Presidente tinha conhecimento dos atos ilícitos em questão para que se pudesse afirmar que ela, deliberadamente (dolosamente) nada fez. Temos, aqui, mais uma vez, uma deturpação da “teoria do domínio do fato”. Não se condena criminalmente alguém sob o fundamento de que “não tinha como não saber” (sic). A condenação com base nessa teoria demanda que se prove que a pessoa (hierarquicamente superior) tinha conhecimento do cometimento de atos ilícitos e a capacidade de impedir a ocorrência dos ilícitos – ou seja, que ela tinha o “domínio do fato”, a capacidade de evitar a ocorrência do fato.

(...)

O argumento que ganhou maior notabilidade contra a Presidente foi o das chamadas “pedaladas fiscais”(sic). Neste caso, o fato de não repassar previamente AOS BANCOS PÚBLICOS
 o dinheiro necessário para pagamento de programas sociais, com os bancos então realizando os pagamentos mesmo sem ter recebido o dinheiro do Governo Federal. Nisso o Tribunal de Contas da União entendeu que se trataria de operação equivalente a “operações de crédito”, ao passo que a Lei do Impeachment fixa como crime de responsabilidade a realização de operações de créditos com OUTROS ENTES FEDERATIVOS(art. 10, n. 9, da lei 1.079/50).

Sobre a autorização para um BANCO PÚBLICO pagar beneficiários de programas sociais, o TCU usou o instituto da analogia, já que OPERAÇÃO DE CRÉDITO, como legado, em sentido estrito, não houve, embora a Corte de Contas afirmar tratar-se de operação que a ela se assemelha. Ora, se crimes de responsabilidade são  'crimes'(como são), descabem juízos analógicos como este.  Assim, não há fato tipificado como crime de responsabilidade.

Parecer de Ricardo Lodi é peremptório ao explicar que “é preciso definir juridicamente uma OPERAÇÃO DE CRÉDITO,  no âmbito do contexto normativo em questão, a fim de evitar que outras relações jurídicas, de interesse da sociedade e das instituições financeiras oficiais, tenham que deixar de ser efetivadas”...

(...)

Ademais, é preciso lembrar que o TCU, ao deliberar dessa forma, alterou entendimento sedimentado em sentido oposto – que considerava regulares tais procedimentos adotados pela Chefe do Executivo, assim como o fez quando ações similares foram praticadas por muitos dos ex-Chefes do Executivo anteriores. Ora, nada impede que o TCU proceda a um “overruling”, sem embargo, ele não pode frustrar a legítima expectativa de comportamento formada anteriormente. Sua mudança poderia vir como uma sinalização de que, no futuro, tais ações não seriam mais aceitas, mas não “mudar as regras do jogo” durante o seu curso.

(...) 

Cite-se, ainda, fato que não consta (pelo menos ainda) do pedido de impeachment, mas que ganhou enorme repercussão nos últimos dias, a saber, o teor da conversa da Presidente Dilma com o ex-Presidente Lula, em grampo objeto da Operação Lava Jato, pelo qual aquela disse que enviaria um “termo de posse” para este usar apenas caso precisasse (e nada mais). Primeiro, é preciso discutir a legalidade dessa gravação, já que o próprio juiz Sérgio Moro reconheceu que a gravação foi feita após ele ter determinado o fim do grampo, embora inexplicavelmente não tenha visto ilegalidade nisso. Ora, se não havia mais autorização legal para o grampo, este constitui prova ilícita, a qual, portanto, não pode motivar condenação nenhuma, seja por crimes comuns, seja por crimes de responsabilidade...

(...)

Mas, superado este aspecto, no mérito dita gravação também não constitui prova nenhuma de crime de responsabilidade contra o funcionamento do Poder Judiciário. Afirma a mídia que a Polícia Federal interpretou essa fala da Presidente Dilma ao ex-Presidente Lula como uma espécie de recado a este para se tornar ministro apenas se vislumbrasse receio de ter sua prisão decretada por Sérgio Moro, para transferir sua competência ao STF. Convenhamos, trata-se de uma teratológica ilação pautada pura e simplesmente no subjetivismo (achismo) dos policiais em questão. A explicação da Presidência da República, também divulgada na mídia, é, no mínimo, defensável (senão verossímil): assinar o “termo de posse” apenas se Lula não pudesse comparecer pessoalmente a Brasília para tanto (a se entender que isso constituiria uma irregularidade formal eventualmente passível de anular a posse, tal é irrelevante para fins de “provar” dolo da Presidente da República, como muitos querem fazer crer)....

(...) 

Além disso, cabe dizer que não há aqui sequer irregularidade do ponto de vista “administrativo”, o que contudo, não encontra correspondência às hipóteses legais para um pedido de impeachment. A nomeação de Ministros de Estado é, nos termos do art. 84, I, da CF/88, ato de governo e não constitui um ato administrativo propriamente dito, não estando, em princípio sujeita, sequer, ao controle judicial. A nomeação de Ministros(as) de Estado é ato privativo do(a) Presidente da República, estando submetida tão somente às condicionantes do disposto no art. 87 da CF/88.

Absurdo dizer-se que a “renúncia fiscal” da Copa do Mundo seria crime de responsabilidade. Primeiro, foi uma das condições para o Brasil poder receber a Copa do Mundo. Contudo, o principal é que tal foi feito por lei que, como tal,  obviamente aprovada pelo Congresso Nacional. Logo, não se tratou de ato da Presidente da República, por se tratar de uma lei aprovada pelo Parlamento e por ela sancionada.

Em suma, de acordo com o que se apurou até o momento, não há crime de responsabilidade cometido pela Presidente da República, como, aliás, atestaram pareceres de diversos juristas de peso da nossa comunidade jurídica[15] – e, sem crime de responsabilidade, o impeachment é inconstitucional, por violação do princípio presidencialista, porque impeachment não é sinônimo de voto de desconfiança parlamentarista. Inconstitucional, ainda, por violação do art. 85, parágrafo único, da Constituição, que remete à lei (recepcionando a Lei 1.079/50 – como já mais de uma vez se manifestou o STF tanto no procedimento envolvendo o ex-Presidente Collor, quanto no procedimento atual) a definição (taxativa) dos crimes de responsabilidade – e isso independente da natureza penal ou não deles, pois se a Constituição remete à lei a sua definição, então evidentemente dita lei, até por seu caráter sancionatório, deve ser interpretada de forma estrita e restritiva.

Dessa forma, pode o(a) Presidente da República impetrar mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal para que este barre ou nulifique processo de impeachment em tramitação sem que haja fato enquadrável hipoteticamente como crime de responsabilidade a justificá-lo. Obviamente, o juízo de mérito sobre se a pessoa praticou ou não fato enquadrável como crime de responsabilidade e se deverá ou não sofrer impeachment por isso é decisão soberana do Senado – a questão é que, como não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa (Gadamer/Streck), não se pode dizer que um fato que não constitui crime de responsabilidade seja enquadrado como crime de responsabilidade, simplesmente por uma vontade política, o que, mais uma vez, configuraria abuso de poder, razão pela qual não pode o Senado decretar o impeachment sem que haja hipótese de crime de responsabilidade em tese cometido pelo(a) Presidente da República. O mesmo vale para a Câmara, que não pode dar início a processo de impeachment se, em tese, os fatos apontados na denúncia não correspondem a crime de responsabilidade (o que vale também para o Senado, quanto ao recebimento da denúncia).

Aí entra a competência do Supremo Tribunal Federal: impedir que tramite ou declarar a nulidade de eventual decretação de impeachment sem que o fato que o ensejou constitua crime de responsabilidade. Do contrário, o instituto do impeachment terá sido equiparado ao instituto do voto de desconfiança parlamentarista, o que seria teratológico e, assim, manifestamente inconstitucional, absurdo e abusivo.

(...)

Em sede de conclusão, cabe a reiteração da tese já afirmada: deve o STF declarar a nulidade de eventual decretação de impeachment sem que o fato que o ensejou constitua crime de responsabilidade, ou mesmo impedir a tramitação de um tal processo. Do contrário, o instituto do impeachment terá sido equiparado ao instituto do voto de desconfiança parlamentarista, o que seria teratológico e, assim, manifestamente inconstitucional e absurdo. Parece haver interesse de agir para parar a tramitação de processo de impeachment sem crime de responsabilidade a qualquer momento. Mas, certamente, o interesse de agir existirá pelo menos quando for afastado(a) o(a) Presidente da República, quando do recebimento da denúncia pelo Senado (que, pela decisão do STF na ADPF 378, pode não receber a denúncia – algo normal nos processos penais em geral, nos quais o recebimento da denúncia é uma decisão que admite o seu não-recebimento, diga-se de passagem, sendo compatível com o bicameralismo que se entenda dessa forma em processos tão dramáticos, excepcionais e sensíveis à democracia como o é o processo de impeachment).

Ou seja, Supremo Tribunal Federal deve garantir a supremacia da Constituição, do Estado Democrático de Direito ao rejeitar o Direito Penal do Inimigo e impedir a quebra das regras do jogo, constitucionalmente impostas, àqueles que boa parte da opinião pública (sic) considera execráveis (e a menção ao Direito Penal do Inimigo se justifica devido à absurda necessidade de se reafirmar que elas valem a todas e todos, mesmo àquelas e àqueles de quem se discorda ou mesmo não se gosta etc.). Esse é o preço de vivermos em um Estado Democrático de Direito, que tem em si inerente o respeito à Constituição. Não interessa aqui, do ponto de vista jurídico, se alguém considere Dilma e o PT “bandidos” (sic), ou se considera uma “cara-de-pau” a alegação de ausência de provas contra ela, o ex-Presidente Lula etc. Quem acusa tem que provar e não há provas de participação da Presidente Dilma em atos concretos de corrupção e não se aplica o “não tinha como não saber” fora da responsabilidade civil e trabalhista (não se aplica a impeachment). Pedaladas (sic), na forma como praticadas, não são crime de responsabilidade(seriam se constituissem verdadeiras operações de crédito e com “ente federativo”(banco privado)... 

 (...)  

É preciso levar o Direito a sério. Esse é o único intuito deste artigo quando se propôs a demonstrar que o Direito pátrio não enquadra as condutas da Presidente da República como crimes de responsabilidade, não se podendo ainda admitir teratologias na tentativa de se “forçar” a incidência apenas por um “ato de vontade” do intérprete, como bem sabe a jurisprudência uníssona que diz que, embora não caiba, como regra, atacar decisão judicial por mandado de segurança, isso é excepcionalmente cabível, quando a decisão seja teratológica – a analogia é perfeita para demonstrar o Supremo Tribunal Federal não pode considerar como válida a imputação a um(a) Presidente da República de uma conduta como crime de responsabilidade quando seja indefensável o enquadramento de tais condutas como tal. Essa é a questão.


Leia também: 

(*) Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia é Doutor e Mestre em Direito pela UFMG, Professor da UFOP e da IBMEC. **Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é Doutor em Direito e Professor associado da Faculdade de Direito da UFMG. ***Paulo Iotti é Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado e Professor Universitário. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário