A revanche dos
ressentidos
Depois da eleição de Bolsonaro, os demônios interiores saíram para passear...
Eleitores comemoram vitória de Bolsonaro F. MAIA ag.EFE)
ELIANE BRUM, no jornal 'el país'
Acompanhava uma amiga no aeroporto, em São Paulo. Os elevadores
que levavam do estacionamento aos terminais demoraram. Quando finalmente entramos,
estava lotado. Um homem com um bebê no colo, possivelmente seu neto, gritou:Quando Bolsonaro assumir,
isso aqui vai andar rápido!”. E acrescentou: “Pá! Pá! Pá!”. Abri a
boca para perguntar: “Você está atirando no seu neto?”. E então percebi
que não poderia fazer isso sem me arriscar a sofrer violência. O homem e a
família que o rodeava realmente pareciam acreditar que Bolsonaro dará “um
jeito em tudo”, dos “comunistas”, que supõem existirem aos milhões,
à velocidade dos elevadores. ||| A eleição de Jair
Bolsonaro, o populista de extrema direita que será o próximo presidente do
Brasil, liberou algo no país. Um ressentimento contido há muito – por muitos.
Todo o tipo de recalque emergiu dos esgotos do inconsciente e hoje
desfila euforicamente pelas ruas, escolas, universidades, repartições públicas,
almoços de família. ||| Gays são ameaçados de
espancamento se andarem de mãos dadas, ou simplesmente por existir, mulheres
com roupa vermelha são xingadas por motoristas que passam, negros são avisados
que devem voltar para a senzala, mulheres amamentando são induzidas a esconder
os seios em nome da “decência”. Aquele amigo de infância de quem se guardava
uma boa lembrança escreve no Facebook que chegou a sua vez de contar o quanto o
odiava em segredo e que pretende exterminá-lo junto com a sua família de
“comunistas”. Um conhecido que passou a vida adulta acreditando merecer mais
sucesso e reconhecimento do que tem, agora espalha sua barriga no sofá da sala
e vocifera seu ódio contra quase todos. Outro, que se sempre se sentiu ofendido
pela inteligência alheia, sente-se autorizado a exibir sua ignorância como se
fosse qualidade. ||| Mensagens
no Facebook anunciam que vão caçar todos os que votaram contra
Bolsonaro e jogá-los na fronteira. Aqueles que se opuseram ao autoritarismo são
tratados por essa multidão enraivecida como se fossem estrangeiros – e o país
tivesse deixado de pertencer também a eles. Como nos princípios do regime
totalitário do cada vez mais atual 1984, clássico de George Orwell: “Guerra
é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”. ||| A
atmosfera tóxica do Brasil atual pode ser resumida por um trecho da carta que
chegou ao Centro Acadêmico da Geografia, na Universidade Federal do Pará, em
Altamira: “Bem vindos ao fascismo! Agora é a nossa vez, agora é o nosso
momento, vocês vão ter que engolir porque vamos passar por cima de cada um de
vocês, cada gay, cada ‘sapatão’, preto e preta. Vamos exterminar cada um de
vocês. (...) Vão morrer um por um, cada preto e preta que acham que podem sair
da senzala”. A carta anônima termina com: “Viva Bolsonaro! Viva a ditadura!
Viva o Fascismo! Viva o Carlos Alberto Brilhante Ustra!”. |||
Como as palavras se esvaziaram de sentido no Brasil, “comunismo”
e “comunista” virou o nome para tudo e todos que se odeia, seja pela
orientação sexual, pela cor da pele ou pela atuação política. O termo não tem
mais nenhuma relação com seu conceito, mas foi apropriado como o pecado da
parcela da população que denunciou o autoritarismo criminoso de Bolsonaro, um
apologista da tortura e dos torturadores. E assim o Brasil inaugura um outro
tipo de Guerra Fria. ||| O pacto civilizatório,
aquele que permitia a convivência, já vinha sendo rompido nos últimos anos no
país. Agora foi rasgado por completo. Este é o primeiro sinal.
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