A esperança e as
suas consequências
Não pode haver esperança num país governado por banco, envenenado por um
monopólio de televisão e asfixiado pela riqueza que recolhe menos que a classe
média...
O que o golpe e o fatalismo conservador tentam nos
explicar há oito meses é que a esperança que se alimenta de aspirações por mais
justiça e democracia é um atentado ao equilíbrio das contas nacionais, como o
perseguido agora pela PEC 55. Enquanto a dissonância não retroceder, o ambiente
político não desanuviará, os mercados não vão relaxar, a incerteza e a crise
persistirão, advertem colunistas anexados a relatórios de bancos e vice-versa.
A esperança é disfuncional. E, como ela, o pleno emprego que a alimenta e a
potencializa ao ampliar o poder de pressão dos historicamente privados dessa
prerrogativa na vida nacional. Até que a sociedade se convença de que um país é
como uma empresa com dono, sendo a população a sua mão-de-obra, a colisão entre
as expectativas afloradas nos últimos doze anos e a abrangência daquilo que os
mercados estão determinados agora a tomar de volta continuará a arrastar o
Brasil ao fundo.
Aqui e ali podem ocorrer cenas de barbárie e
degola, mas não é propriamente um desastre. É uma compressão deliberada para baixo. Trata-se de uma operação para devolver ao seu lugar
os que emergiram na década de ‘voluntarismo econômico’, como conceituou mais de
uma vez a retirada de 30 milhões de brasileiros da miséria, e a ascensão de
outros tantos na pirâmide da renda, o principal líder do conservadorismo
tropical, Fernando Henrique Cardoso.
Não há improviso: os custos em libras de carne
humana nessa hidráulica regressiva são calibrados matematicamente. A intelectualidade liberal do PSDB tem perfeito
domínio do cálculo, conhece as variáveis e as suas consequências. Economistas de banco monitoram as comportas da
imersão nacional no que se chama de ‘ajuste’ redentor. São eles que alimentam a pauta do jornalismo de
mercado com projeções e temas rapidamente adicionados à narrativa da
vulgarização neoliberal.
O que se veicula é que até meados do segundo semestre
de 2017 o desemprego atingirá a faixa dos 13% da população economicamente
ativa. A taxa atual é de 11,9% (dado do terceiro trimestre
de 2016).
A legião de brasileiros e brasileiras demitidos já
reúne 12,1 milhões de pessoas, sendo 33% maior do que o existente no mesmo
período de 2015. É o dobro do contingente computado há dois anos, no
final de 2014.
A espiral acaba de cravar um recorde: o
Brasil tem hoje a maior massa de desempregados da série histórica iniciada em
2012.
Não se sabe quantos dessa diáspora terminarão a
viagem em uma biqueira de droga, em uma penitenciária lotada ou alinhados ao
PCC, ao FDN etc. No mercado financeiro, porém, considera-se
desejável que esse feito vá além. Trabalha-se com uma projeção de 13 milhões de
pessoas demitidas até o segundo semestre deste ano –quase um Portugal e um
Uruguai juntos de desempregados.
A população ocupada cairia então para 88,5 milhões
de pessoas em uma sociedade com mais e 200 milhões de habitantes. Quando isso se consolidar, a principal linha de
resistência à ganância dos mercados em qualquer sociedade, verdadeira ponte
para o futuro em termos de inclusão social, reformas democráticas e
progressistas, terá sido aplastada da vida dos brasileiros.
Estamos falando do pleno emprego, esse anátema
keynesiano esconjurado pelas classes patronais de todo o planeta. Meta obrigatória do Banco Central dos EUA, aqui ele
foi construído em quatorze anos de governos do PT e sua demolição agora figura
como o imperativo obrigatório de todo o arsenal de reformas que o golpe
preconiza para o país.
Não por acaso, os ‘efeitos colaterais’ do desmonte
são naturalizados na mídia como um custo palatável face às vantagens que
introduz no coração da economia. Quais? Aquelas em que o Estado, o Parlamento, as leis e regras
de mediação em geral voltam a assegurar a reprodução da riqueza existente, sem
contestações estruturais à repartição social do excedente. Uma guarnição inédita de providências já tomadas e
outras em curso cuidam de devolver os desamparados à vulnerabilidade que blinda
a manutenção da nova ordem.
Submeter um mercado de trabalho em frangalhos à
supremacia do negociado sobre o legislado é um exemplo desse arsenal. A terceirização geral, outro. A desproteção ao valor real do salário mínimo
insere-se na mesma matriz. Dela fazem parte também as novas dificuldades de
acesso e de manutenção do valor das pensões e aposentadorias --ademais do
achatamento de recursos destinados à universalização de direitos sociais, como
a saúde e a escola pública.
Em síntese: de um lado, joga-se a carga ao
mar. De outro, enxuga-se o acervo de boias e
salva-vidas disponíveis. A recessão embutida nessa travessia é um custo
brando para quem pode manter o capital ocioso em regime de engorda assistida, a
juros de 13,75% ao ano.
Posta de joelhos a massa pobre e assalariada, o
resto escorre por gravidade. Ao ataque maciço e abusado aos direitos inscritos
na Carta de 88 segue-se o assalto e a alienação de patrimônio público
indispensável ao comando soberano do desenvolvimento. O que se acalenta é algo de dimensões
ciclópicas.
O saldo final do arrasto que esse processo para o
fundo acarretará no mercado informal de trabalho, por exemplo, no universo dos
‘conta-próprias’, dos que vivem de bicos, dos que se defendem em diárias e dos
que nada tem a defende-los, exceto o piso da exploração fixado pelo salário
mínimo, é imponderável. Mas não é um tsunami genuinamente
verde-amarelo. O que se passa no Brasil, na verdade, é a
tentativa de engatar o país ao comboio de um capitalismo global em retrocesso
acelerado rumo ao ventre selvagem do sistema, nos primórdios dos séculos XVIII
e XIX.
Mais que negar novos direitos, a desordem
neoliberal --sem forças de ruptura para sobrepuja-la, acelera a des-emancipação
e o desamparo do mundo do trabalho em todas as latitudes. É disso que trata o mais recente filme de Ken
Loach, por exemplo, que acaba de estrear no Brasil. ‘Eu, Daniel Blake’ conta a via crucis de um
carpinteiro impossibilitado de trabalhar após um ataque cardíaco. O infortúnio coloca-o diante do desmonte do Estado
do Bem-Estar Social inglês, um dos mais avançados do mundo até Thatcher,
substituído agora por um labirinto cuja finalidade é exaurir os desamparados
para abandona-los à própria sorte.
Em todo o mundo capitalista o Estado emite o mesmo
aviso. O tempo em que o destino de cada um dizia respeito
ao interesse de todos se esgotou. A desumanização do Estado brasileiro é parte dessa
debandada, abortada depois dos anos 90 por quatro derrotas sucessivas do PSDB
para frentes progressistas lideradas pelo PT.
É hora de recuperar o tempo perdido. É tempo de murici, que cada um cuide de si’, sugere
o ministro da Saúde, por exemplo, emulando o coronel Tamarindo na debandada das
tropas republicanas em Canudos (1896-1897). Visto pela lente desfocada do jornalismo
oficialista o lema Tamarindo vai melhorar a eficiência da economia e ajustá-la
ao padrão internacional. À narrativa de gerência de banco, sobre o desastre
fiscal se a pobreza insistir em respirar, dispensa-se o tratamento respeitoso
atribuído às verdades científicas. O resto é populismo e corrupção.
Para resistir à lobotomia é necessário recusar os
limites do raciocínio e os seus fundamentos. Inclui-se aí transcender a disputa paroquial com
tucanos e assemelhados para redesenhar a pauta da política brasileira,
atualizando-a nas questões cruciais do nosso tempo. Entre elas a defesa de valores e direitos
universais, inseparáveis da luta por um desenvolvimento que seja também a
audaciosa escolha por viver em um país de oportunidades convergentes, não de
interesses radicalmente contrapostos.
Quem adiciona ao interesse particular a sua
dimensão pública é a política, ora desqualificada pelos ‘gestores’ brancos e
ricos que se fantasiam de gari no amanhecer e fecham a noite na Ferrari
blindada. Para haver resgate da esperança nesse chão mole é
preciso assumir as suas consequências. Não pode haver esperança num país governado pela
taxa Selic definida pela banca. Não pode haver esperança num país envenenado pelo
monopólio de uma rede de televisão que interdita o debate e as alternativas do
desenvolvimento.
Não pode haver esperança em um país onde a classe
média recolhe 12% de imposto, enquanto os muito ricos recolhem apenas 7% aos
fundos públicos. Não pode haver esperança num país onde a
plutocracia rentista se recusa a pagar uma alíquota mínima sobre operações
financeiras para viabilizar a saúde pública. Não pode haver esperança num país onde o sistema
político transformou parlamento em um assembleia contra o povo a serviço do
mercado.
Não se trata de negar os requisitos de
previsibilidade econômica, fiscal e financeira, sem os quais dissipa-se o chão
do investimento público e privado. Mas, sim, de afirmar a prerrogativa das escolhas
soberanas da sociedade na composição e finalidades do desenvolvimento.
‘Com a esperança entre os dentes’ é o título de um
livro do marxista, pintor, ensaísta, roteirista inglês, John Berger, falecido
na primeira segunda-feira deste ano (02/01/017) É uma legenda interessante para o Brasil dos dias
que correm. O que Berger sempre disse de alguma forma, assim
como Loach em seus filmes, é que diante da marreta da des-emacipação social em
curso no capitalismo, o peso material das ideias assume renovada importância.
Longe de ser um escapismo idealista, trata-se de
reconhecer o salto necessário na organização do discernimento coletivo para que
a sociedade possa pensar o futuro longe dos critérios da régua opressora. Não é um convite à pequena alegria dos édens
isolados.
As chances alternativas só se completam na prática
transformadora, quando a esperança é levada a provar que pertence ao mundo
através da ação que devolve à sociedade o comando do seu destino.
Câmbio ajustado, poder de compra, consumo de massa,
crédito, financiamento, taxa de juro civilizada incluem-se entre os
ingredientes da difícil calibragem do desenvolvimento na vida de uma nação. Mas a verdade escancarada na derrota progressista
para o Golpe de Agosto é que a macroeconomia não basta --até porque ela será
sempre um reflexo das contradições que estilhaçam a sociedade capitalista.
A crise econômica não se explica nem se resolve
nela mesma. Insistir nesse reducionismo, seja pela fé cega nos
mercados, ou a confiança na sua indulgência com a justiça incremental, adia
soluções e induz à repetição de equívocos. Os riscos se equivalem: num extremo, descartar
qualquer opção ao ajuste draconiano exigido pelos mercados; no outro, propugnar
pactos com quem não os quer, sem ter a organização popular que os faça querer. A fase alegre dos consensos sempre foi efêmera sob
o capitalismo; hoje mais que nunca.
O filósofo húngaro István Mészàros chama a atenção
para as consequências desastrosas de se subestimar a extensão de uma crise
sistêmica inerente à supremacia rentista que solapa direitos e esmaga a
dimensão pública da vida. Ele sublinha o esgotamento histórico de projetos
que ignorem ou minimizem a guerra social aberta decorrente da voracidade
financeira que invadiu o ambiente produtivo, social, psíquico e político
do nosso tempo.
A coisificação que atribui o papel de sujeito às
coisas –o dinheiro e o mercado entre elas— e de coisa às pessoas
tornou-se asfixiante. A financeirização acentua os efeito da lente
desfocada, sujeitando a sociedade a uma leitura suicida dos requisitos
econômicos, sociais e ambientais à sobrevivência humana no século XXI. A colonização dos partidos de esquerda pela
película embaçante do neoliberalismo é uma das dimensões da tragédia. O ponto a reter, adverte o filósofo, é que isso não
é um acidente transitório na sala de comando do Estado ou na casa de força da
democracia liberal.
A determinante do nosso tempo é que ‘a acumulação
de capital não pode mais funcionar adequadamente no âmbito da economia
produtiva’, explica Mészàros em síntese iluminadora. A nova hegemonia rentista desembarcou para ficar
com a sua bagagem de barbárie econômica, demônios políticos e dissimulações
ideológicas.
Até que seja desautorizada politicamente,
radicalizará e ao mesmo tempo renegará a dependência última do sistema em
relação à verdadeira fonte do valor: a exploração do trabalho
assalariado.
Deriva daí o pior dos mundos. Esse que nos coage, de um lado, cuspindo desemprego
estrutural e legiões de precariatos; e, de outro, regurgitando relações
trabalhistas que perseguem uma espécie de conjunção do regime escravo com o da
liberdade em pleno século XXI. A sintonia do golpe com os ares do mundo se dá
nesse moedor de carne humana acionado aqui para destruir o pleno emprego
herdado do ciclo petista.
No ambiente global a moenda está alguns passos à
frente. Novas formas de exploração e de produção incluem
jornadas flexíveis e terceirizadas para uma mão-de-obra estocada em seus
próprios domicílios.
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